Os colaboradores "invisíveis" que também fazem ciência

Questão de Fato
1 nov 2022
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laboratório

 

Por trás de toda descoberta científica e de seu autor declarado, quase sempre há um exército de apoio invisível. Em suas fileiras estão engajados técnicos, bibliotecários, gerentes de pesquisa e especialistas em informática, por exemplo. O trabalho dessas pessoas é essencial para o desenvolvimento e o sucesso de um estudo e para sua publicação, mas raramente são reconhecidas ou citadas. Quando muito, aparecem de forma anônima nos agradecimentos do cientista em seu paper.

O biólogo Fernando Lima, do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), cita uma série profissionais fundamentas para a realização de uma pesquisa. Entre eles, os assistentes de campo, que são pessoas treinadas, com formação técnica, capazes de coletar dados sistematicamente em campo e laboratório, tomar notas e fazer planilhas. Há ainda os da área de logística, familiarizados com as necessidades de projetos, responsáveis pela preparação de equipamentos.

O biólogo do IPÊ acrescenta à lista os analistas de dados, papel muitas vezes atribuído a estudantes de pós-graduação. “Mas já visitei um laboratório onde havia um programador com domínio de análises estatísticas, que se responsabilizava pela organização e preparação de scripts”, conta. “Isso permite que pesquisadores se dediquem à pesquisa, redação e interpretação dos resultados, ao invés de terem que aprender programação para analisar os dados”.

O físico Peter Schulz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observa que o conjunto de pessoas envolvidas nas pesquisas varia com área e tipo. “Normalmente envolve os pesquisadores e estudantes, mas técnicos de laboratório são muitas vezes imprescindíveis, bem como bibliotecários ou os técnicos na área de informática”, explica. “Essa rede de pessoas eu costumo chamar de tecido conjuntivo da ciência”.

Em um artigo publicado no início do ano, dois pesquisadores britânicos observam que esses papéis essenciais e ocultos raramente são celebrados ao lado de realizações de pesquisa, o que pode dificultar convencer os graduados em ciências, tecnologia, engenharia e matemática, por exemplo, a considerá-los como opções de carreira. Para eles, reconhecer a diversidade dos papéis que mantêm uma cultura científica em funcionamento é um desafio que os processos de avaliação de pesquisa em todo o mundo não conseguiram resolver.

Em outro artigo publicado em abril, três pesquisadoras, duas da Holanda e uma da Austrália, dizem que os profissionais das organizações de pesquisa são normalmente divididos em duas categorias: equipe acadêmica e equipe de apoio. Elas escrevem que perceberam que, nos últimos anos, trabalhos de “apoio” se tornaram mais importantes na ciência, incluindo funções como administradores de dados, engenheiros de software de pesquisa, gerentes de comunidade científica e de programas. 

Para as três, a diversidade de funções e contribuições impulsiona o progresso e o sucesso em pesquisa e inovação. Por isso, veem a distinção nítida entre “acadêmicos” e “funcionários de apoio” como uma barreira ao trabalho científico eficaz, porque desencoraja uma cultura de colaboração e valorização de uma diversidade de papéis e contribuições. Por isso, defendem que está na hora de repensar a divisão.

As autoras não estão sozinhas. Uma pesquisa da Associação de Gerentes e Administradores de Pesquisa do Reino Unido, citada por elas, descobriu que alguns jovens pesquisadores “são levados a sentir que falharam” se mudarem de carreira para uma função de serviços profissionais. Alguns entrevistados pediram uma cultura em que todos sejam reconhecidos por suas habilidades complementares, não apenas os “cientistas estrelas”.

Na Holanda, um documento, elaborado por cinco organizações acadêmicas do país, pediu que se repensasse o sistema acadêmico de reconhecimento e recompensas. O texto chama a atenção para a necessidade de diversificação de carreiras para o corpo docente, e para a valorização não apenas do desempenho individual, mas também da equipe.

É também o que pensa a biomédica Carolina Neumann Keim, do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ela, a atividade científica deveria ser vista como coletiva, sem tanta ênfase nas contribuições individuais, porque hoje, são minoritárias. A estrutura dos grupos de pesquisa deveria ser mais horizontal.

De acordo com ela, há muita distorção, com pesquisadores mais velhos e que ocupam postos mais altos na hierarquia “usurpando o trabalho” dos mais jovens e que estão em posições inferiores. “Essa visão de atividade coletiva deveria perpassar desde o financiamento até o resultado final, seja produto, processo, patente ou publicação, passando também pelos programas de pós-graduação”, defende.

Poucos negam a importância do trabalho dos profissionais de apoio. O engenheiro eletricista José Roberto Cardoso, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), por exemplo, ressalta o trabalho dos técnicos de laboratório. “São profissionais que fazem a diferença em um trabalho de pesquisa”, reconhece. “Um apoio inadequado invalida vários processos e a pesquisa fracassa. Por outro lado, o bom técnico precisa ser formado ao longo do tempo, pois a experiência passada faz diferença”.

O problema é que o reconhecimento normalmente só ocorre entre as paredes dos laboratórios, no âmbito das próprias das equipes. Para a sociedade, e as publicações, os profissionais dos serviços de apoio permanecem invisíveis. “Muitas vezes uma contribuição importante fica mesmo oculta”, diz Schulz. “Em alguns casos, técnicos são incluídos como coautores dos artigos. Às vezes, esse pessoal ganha visibilidade nos agradecimentos no final dos artigos, mas pouca gente presta atenção nessa parte do trabalho ou publicação”.

Por isso, ele defende que os agradecimentos passem a ser objeto de estudo, para tentar entender as contribuições ocultas. Em seu artigo, ele diz que seria interessante desenvolver ferramentas que os capturassem e os quantificassem nas bases de dados bibliométricos. “A frequência desse ou daquele tipo de agradecimento varia entre áreas do conhecimento e ajudaria a entender melhor o contexto da descoberta, além de tornar mais visível (e reconhecer) o tecido conjuntivo da ciência”, escreve.

Mesmo quando a contribuição vai além do trabalho de apoio, os profissionais de suporte permanecem ocultos. É o que acontece em um centro de microscopia da UFRJ, no qual trabalham vários técnicos, alguns deles concursados e outros bolsistas. “Já ouvi reclamações de um deles de que com frequência eles dão ideias de experimentos, dicas de preparação de amostras, ou interpretam os dados dos ‘clientes’”,  conta Carolina. “Em suma, dão contribuições relevantes e chegam a fazer a maior parte do trabalho, mas raramente são incluídos nas listas de autores”.

Em seu artigo do início do ano, os pesquisadores britânicos citam o exemplo de um engenheiro, que trabalha há 30 anos na Marine Biological Association, em Plymouth, Reino Unido. Ele é responsável por, entre outras coisas, projetar e construir ferramentas de amostragem marinha e consertar equipamentos de laboratório. De acordo com os autores, ele é o “cara” quando as coisas quebram ou não funcionam, ou quando os pesquisadores precisam debater ideias. A ciência dali não poderia ser feita sem ele. No entanto, as pessoas como ele raramente são nomeadas em produtos ou publicações de periódicos, que surgem como resultado de sua experiência – diminuindo a maneira pela qual seu trabalho é reconhecido, celebrado e promovido como uma potencial carreira na ciência.

A questão de como medir as contribuições na ciência ainda não foi resolvida, acrescentam. No ambiente de laboratório, os cientistas valorizam pessoas como o engenheiro citado e não conseguem imaginar a vida sem elas. Mas, sem reconhecimento formal, suas contribuições não são valorizadas de fato. A coautoria é uma opção, dizem, mas não se deve limitar o reconhecimento por meio da publicação. Nem todos são motivados pela ideia de coautoria, então a comunidade de pesquisa deve estar aberta a formas mais relevantes de dar crédito onde é devido.

Lima concorda. Para ele, nem sempre a coautoria é a melhor forma de consideração. O importante é entender as expectativas dos profissionais de suporte. “O cientista pode achar que o maior reconhecimento seria a colaboração em um manuscrito”, diz Lima. “No entanto, para o corpo técnico, na maioria das vezes, o agradecimento público em entrevistas, matérias impressas na mídia ou em redes sociais é algo que faz mais sentido”.

Mas isso é pouco comum. “Raramente um pesquisador ou pesquisadora agradece ao receber prêmio, homenagem, promoção ou publicação de impacto a estes profissionais”, diz a física Marcia Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Enquanto os técnicos administrativos continuarem sendo tratados como servidores de segundo escalão, tendo menos voz na eleição dos dirigentes institucionais, os agradecimentos, mesmo os financeiros como bolsas, não expressarão a merecida equidade”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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