Medo e delírio na comunicação da ciência

Apocalipse Now
21 nov 2021
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Parece haver um razoável consenso entre as pessoas que se dão ao trabalho de parar para pensar no assunto – dentro e fora da comunidade científica – de que o sistema de incentivos baseado em produtivismo bruto (em que cientistas são punidos ou recompensados segundo a quantidade de trabalhos que publicam e de citações que recebem), somado ao caráter “espetacular” da sociedade global, em que estar aos olhos do público vira indicador de respeitabilidade, atrai verbas e incensa reputações, vem gerando um verdadeiro tsunami de resultados, na superfície científicos, mas de fato irreprodutíveis, irrelevantes ou simplesmente errados.

São trabalhos que existem porque é preciso cumprir alguma meta burocrática de publicações para conquistar este ou aquele índice neste ou naquele ranking, não porque havia uma questão legítima a ser respondida, um aspecto relevante da natureza a ser explorado, uma hipótese viável a ser testada; e que são conduzidos no limite inferior da qualidade metodológica, às vezes representando pouco mais do que pobres arremedos.

Diagnósticos a respeito abundam. Sabemos, por exemplo, que o número de artigos retratados – isto é, excluídos do registro científico depois de publicados – na literatura médica é muito menor do que deveria ser, e que muito artigos retratados continuam a ser citados como se seus resultados fossem válidos.

A crise de reprodutibilidade em pesquisa pré-clínica causou um pequeno “escândalo” dez anos atrás, sem que nada de concreto tenha sido feito para melhorar a situação. Cálculos estatísticos sugerem que, mesmo pressupondo as melhores condições e intenções possíveis, a taxa de falsos positivos – isto é, efeitos que aparecem no estudo, mas que não são reais – na literatura biomédica deve ficar em torno de 25% (não há nada de surpreendente nisso; a ciência avança, afinal, por tentativa e erro: o problema do momento atual é a massa de tentativas que vêm erradas desde a concepção). Como estamos muito aquém das condições ideais, a taxa real deve ser bem maior.

É alentador que a confiabilidade dos estudos aumente à medida em que se elevam os padrões de qualidade exigidos e as salvaguardas metodológicas aplicadas (estudos clínicos randomizados com grupo placebo, duplo-cegos e dotados de poder estatístico adequado são altamente confiáveis), mas isso não muda o fato de que o arroz-e-feijão da ciência, a pesquisa cotidiana e rotineira, está sitiada por o que, em outro artigo, chamei de “ciência zumbi”, aquela que tem uma “casca” de cientificidade, traz o verniz do “imprimatur” acadêmico, mas é toda “vazia por dentro”.

 

 

Tesouro do mérito

Esses são todos problemas conhecidos, debatidos e lamentados mas, como na anedota sobre o mau tempo, são o tipo de coisa de que todo mundo reclama sem que ninguém faça nada a respeito. O mundo universitário, em particular, vive sob uma espécie de ilusão coletiva de que, superadas as barreiras estatutárias e burocráticas (concursos, defesas, publicações), tudo é igual: todas as teses da nossa universidade são igualmente brilhantes, todos os artigos publicados dos nossos colegas são igualmente válidos, todos os nossos alunos são acima da média e aqui ninguém comete fraude, só é vítima de mal-entendidos.

Essa ilusão provavelmente desaparece no momento em que os professores cruzam a porta da cafeteria, mas se restabelece assim que passam pelo caixa e retornam à sala de aula, ao laboratório. E sua sustentação como fato político, como máscara apresentada ao público externo, tem consequências. Uma, talvez a mais grave, é a lenta corrosão do capital de credibilidade e de integridade intelectual das instituições, sacado a descoberto para cobrir os déficits que todos concordaram em fingir que não existem.

Alguns teólogos cristãos falam de um “tesouro do mérito”, uma espécie de superávit de merecimento deixado pelas boas ações e sofrimentos dos santos e do Cristo, e que pode ser usado para “pagar” o que falta para a salvação da alma de pecadores menos perfeitos. Algo parecido ocorre em universidades, com a importante diferença de que o tesouro do mérito acadêmico não é infinito, ou “superabundante”, como supostamente ocorre com o da igreja.

Mas é de outra consequência que quero tratar, não menos importante, mas ainda menos visível, tanto para o público quanto para os agentes diretamente envolvidos: as implicações éticas que esse estado de coisas, essa ilusão de que “todos aqui são acima da média”, tem sobre o sistema de comunicação científica das instituições.

 

Ciência de fantasia

Em particular no Brasil, a segunda década deste século foi marcada por uma crescente tomada de consciência da necessidade de o meio acadêmico e de a produção científica “fazerem-se conhecer” pelo público extramuros.

Para além dos compromissos de prestação de contas, respeito pela cidadania e preocupação com a educação científica – evocados com níveis de sinceridade nem sempre significativos – o motivo maior é fácil de articular: numa democracia, a partilha da verba pública leva em conta as prioridades do eleitor, e o que está longe dos olhos fica também longe do coração.

Dada a ilusão de que todas as teses são brilhantes e de que todos os professores e alunos são acima da média, basta ao profissional de comunicação aplicar à produção intelectual da instituição os filtros jornalísticos mais básicos – um estudo sobre a qualidade da água tratada é mais “manchetável” do que a elucidação de uma etapa do processo de fotossíntese, por exemplo – e aí é só correr para o abraço.

O problema, claro, é que o produtivismo burro, entre outras distorções, existe. A ilusão não passa de um delírio. E se a instituição espera que seu profissional de comunicação seja cúmplice na hora de vendê-la ao contribuinte desavisado, ela não quer um divulgador científico, mas um marqueteiro. Que é uma profissão honrada, mas cujas balizas éticas estão mais próximas da publicidade do que do jornalismo sério ou da divulgação científica realmente preocupada em bem informar os cidadãos.

Sob o manto da ilusão, uma tese “demonstrando” a utilidade de nosodos homeopáticos como profiláticos para raiva canina é “tão brilhante” quanto uma outra, mapeando a disseminação da doença em morcegos urbanos.

No mundo real, a primeira é pseudociência perigosa e a segunda tem boa chance de representar uma contribuição importante para a saúde pública. Mas o divulgador científico universitário, ou de agência de fomento, que queira manter o emprego está proibido de enxergar a diferença.

 

Ressalvas

A ilusão exige vassalagem incondicional, e a submissão a ela afeta o profissional, a instituição e a sociedade. Assumindo agora uma perspectiva internacional, há literatura mostrando que mais da metade dos estudos que chegam à mídia sobre fatores de risco para a saúde – o tipo de material mais fácil de “vender” para jornalistas, “cientistas alertam que...” – não são confirmados por trabalhos posteriores.

Mas esses falsos riscos ficam flutuando na consciência coletiva, ganham vida própria, são apropriados pelos camelôs do bem-estar (“algas sem glifosato”), e podem até acabar influenciando políticas públicas.

Outro estudo indica que quando a mídia exagera o significado ou o alcance de um trabalho científico sobre saúde, esse exagero geralmente já estava presente no material de divulgação produzido pela instituição responsável pela pesquisa. No lado positivo, o mesmo estudo mostra que, quando o material de divulgação continha ressalvas dando conta das limitações do trabalho, tais ressalvas tendiam a aparecer nas notícias a respeito.

Esse último ponto – a imprensa tende a respeitar avisos sobre limitações do estudo, quando esses avisos constam do material de divulgação – é valioso, e talvez ajude os comunicadores a navegar seus dilemas éticos, enquanto esperamos que os cientistas resolvam-se com suas ilusões e as universidades despertem de seus delírios de grandeza.  

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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