Ceticismo performático: a maquiagem do negacionismo

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21 mai 2025
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homem em biblioteca

 

"Estou apenas fazendo perguntas". "Precisamos manter a mente aberta". "A ciência avança através do questionamento". Frases como essas podem parecer inofensivas e até louváveis à primeira vista. Afinal, o questionamento não é justamente a essência do pensamento científico? Desde Descartes, com seu ceticismo metodológico, passando pelo ceticismo organizado de Robert Merton, até Karl Popper, com sua ênfase na falseabilidade, a ciência tem encontrado na dúvida seu motor fundamental.

No entanto, existe uma diferença muito importante entre o ceticismo científico legítimo – que busca honestamente o avanço do conhecimento – e o que podemos denominar aqui de "ceticismo performático": uma estratégia retórica que imita o vocabulário e os princípios da dúvida científica, mas com o objetivo oposto de blindar crenças e práticas que não resistiriam ao escrutínio científico rigoroso.

Este fenômeno tem se tornado cada vez mais comum no campo da saúde, onde discursos aparentemente críticos são usados para defender intervenções sem evidência de eficácia, desqualificar consensos científicos estabelecidos ou promover desinformação médica. O resultado é um paradoxo: a linguagem da ciência sendo usada contra a própria ciência.

 

Real vs. performático

O ceticismo científico genuíno é, antes de tudo, equilibrado. Ele aplica os mesmos padrões de rigor a todas as afirmações, independentemente de concordar com elas ou não. Quando novos dados contradizem algo até então estabelecido, o verdadeiro cético está disposto a revisar suas posições. Este é o coração do método científico: a disposição para abandonar crenças quando elas não se sustentam mais diante das evidências.

Já o ceticismo performático opera de maneira assimétrica. Exige padrões de evidência extraordinariamente rigorosos para afirmações que contrariam suas posições preferidas, enquanto aceita evidências mínimas ou anedóticas para aquilo em que quer acreditar. Você já deve ter visto isso acontecer: quando um estudo bem conduzido contradiz uma crença popular, os "céticos performáticos" encontram inúmeras falhas, mas quando um estudo precário parece confirmar a mesma crença, as falhas são convenientemente ignoradas.

Outro sinal revelador é a sensibilidade às evidências acumuladas. O verdadeiro ceticismo ajusta seu nível de dúvida conforme as evidências se acumulam. Se uma hipótese foi extensivamente testada e consistentemente falhou em demonstrar efeitos, o ceticismo legítimo reconhece isso como evidência probabilística de ausência de efeito. O falso ceticismo, por outro lado, mantém o grau de “benefício da dúvida" inalterado, independentemente do acúmulo de evidências contrárias. Como Carl Sagan observou no livro "O Mundo Assombrado pelos Demônios", tanto o ceticismo cego quanto a credulidade excessiva são obstáculos ao avanço do conhecimento. O verdadeiro progresso científico requer equilíbrio: abertura a novas ideias, não importa quão estranhas possam parecer inicialmente, mas também um rigoroso escrutínio cético de todas as ideias, especialmente as nossas próprias.

 

Silenciamento paradoxal

Uma manifestação particularmente sutil – e frequente – do ceticismo performático ocorre em diálogos onde o princípio científico de abertura ao questionamento é instrumentalizado para, paradoxalmente, silenciar o próprio questionamento científico.

Quando um profissional ético questiona uma prática clínica duvidosa por falta de evidências científicas robustas, pode se deparar com uma “contrainterrogação” sobre suas credenciais, acompanhada de um (falso) questionamento. A resposta típica não apresenta evidências que apoiem a prática em si, mas questiona a legitimidade da crítica com frases como: "quanto você estudou sobre isso?", ou "a ciência avança através do questionamento, não é mesmo? Você está sendo dogmático!".

O que torna a estratégia eficaz é a apropriação de um princípio epistemológico legítimo – o papel central da dúvida na ciência – para um propósito ilegítimo: proteger certas práticas do escrutínio científico que o princípio deveria promover. Isso cria uma assimetria em que defensores de práticas sem fundamento científico sequestram a natureza questionadora da ciência para desqualificar aqueles que questionam suas práticas, e não para submetê-las ao ceticismo.

Ao adotar essa postura, o apelo ao questionamento funciona como um mecanismo para encerrar o debate antes que as evidências (ou sua ausência) possam ser adequadamente examinadas. Nessa dinâmica, se o crítico persiste no questionamento baseado em evidências, é acusado de dogmatismo; se recua, a ausência de questionamento é interpretada como validação da prática pseudocientífica. Em ambos os casos, a discussão real sobre evidências é estrategicamente evitada.

O ceticismo performático é, portanto, uma distorção retórica que se apropria da linguagem da ciência e de seus princípios metodológicos para proteger crenças e práticas que não resistiriam ao escrutínio empírico. Em vez de promover o avanço do conhecimento, usa a dúvida como ferramenta de estagnação, criando uma falsa equivalência entre evidência científica e especulação infundada.

 

“Ausência de evidência”

Uma distinção conceitual propositalmente obscurecida no ceticismo performático é aquela entre "ausência de evidência" e "evidência de ausência". Como Sagan observou acertadamente, "ausência de evidência não é evidência de ausência" – um princípio que reconhece os limites do conhecimento negativo. No entanto, essa máxima, embora correta em si, tem sido usada de maneira distorcida para proteger práticas que consistentemente falharam em demonstrar eficácia em estudos adequados.

O princípio é válido principalmente em contextos de investigação preliminar, quando a busca pelo efeito ou fenômeno mal começou. Em tais circunstâncias, resultados negativos iniciais não permitem concluir, com firmeza, que o efeito buscado não existe. Porém, se após investigações sistemáticas, usando metodologias apropriadas, a ausência de evidência persiste, isso pode sim constituir evidência indireta de ausência. Nesses casos, o acúmulo de resultados negativos constitui evidência probabilística da ausência de um efeito. Além disso, embora ausência de evidência não seja necessariamente evidência de ausência, tampouco pode ser considerada evidência de presença. Num contexto terapêutico, a tomada de decisão clínica não pode se basear nessa ambiguidade, sob risco de incorrermos na falácia da inversão do ônus da prova.

A tomada de decisão em saúde requer ceticismo proporcional. O grau de ceticismo em relação a uma intervenção deve ser proporcional à sua implausibilidade e à quantidade de evidência oriunda de estudos clínicos de alta qualidade sobre o assunto. Quanto mais implausível o mecanismo proposto e mais resultados negativos acumulados, mais justificado se torna o ceticismo. Da mesma forma, quanto mais plausível e com mais resultados positivos acumulados, menor é nossa incerteza e, portanto, menor o ceticismo.

O ecossistema digital contemporâneo amplificou a performance de ceticismo retórico na saúde por meio da desinformação médica estruturada. Diferentemente de simples erros ou imprecisões, esse material envolve a criação e disseminação sistemática de conteúdo que imita a forma do discurso da ciência, enquanto distorce ou contradiz o consenso científico estabelecido. Plataformas digitais facilitam a circulação do ceticismo performático, com algoritmos que priorizam o engajamento como critério soberano, criando "bolhas epistêmicas" – espaços digitais em que afirmações circulam e são reforçadas sem encontrar evidências contrárias.

Além disso, muitos veículos de mídia digital, sob o pretexto de "apresentar todos os lados", amplificam vozes marginais sem contextualizar adequadamente o quanto estão distantes do consenso científico, criando a impressão de controvérsia científica legítima em questões onde há, de fato, um sólido consenso. Isso contribui para a viralização das exceções, em que casos atípicos ou anedóticos são amplamente disseminados e apresentados como refutação ou questionamento de padrões estabelecidos por estudos sistemáticos.

 

Como distinguir?

Com base nesta discussão, podemos propor um conjunto de critérios para distinguir o ceticismo legítimo - elemento constitutivo e necessário da prática científica - do ceticismo retórico performático, que opera como uma forma sofisticada de negacionismo:

Reciprocidade metodológica: O ceticismo legítimo aplica os mesmos padrões metodológicos a todas as afirmações, independentemente de seu alinhamento com crenças prévias. Em contraste, o ceticismo performático aplica padrões assimétricos, exigindo níveis extraordinários de evidência para afirmações que contradizem posições ideológicas, enquanto aceita evidências mínimas para aquelas que as apoiam.

Sensibilidade às evidências acumuladas: O ceticismo legítimo ajusta sua intensidade em resposta ao acúmulo de evidências. O ceticismo performático, em contraste, mantém a "dúvida", independentemente da quantidade de evidências acumuladas.

Falibilismo consistente: O ceticismo legítimo reconhece a falibilidade de todo conhecimento, incluindo o conhecimento de quem pratica esse ceticismo. Ou seja, o verdadeiro cético reconhece que suas próprias posições também podem estar erradas e estão sujeitas a revisão. O ceticismo performático, no entanto, invoca o falibilismo apenas em relação a posições contrárias às suas, enquanto apresenta suas próprias posições com certeza dogmática disfarçada de abertura a novas ideias.

Crítica construtiva: O ceticismo legítimo oferece críticas específicas que podem ser respondidas por evidências adicionais. O ceticismo performático oferece críticas genéricas a que nenhuma quantidade de evidências adicionais poderia responder.

Proporcionalidade: O ceticismo legítimo calibra o nível de exigência evidencial à plausibilidade inicial da afirmação e a suas implicações práticas. O ceticismo performático, por outro lado, exige "prova absoluta" para afirmações que contradizem suas visões, ignorando o fato de que tal padrão é epistemologicamente inatingível na ciência empírica.

Distinguir o ceticismo legítimo do performático é uma tarefa importante para preservar o valor da ciência como prática social e, na área da saúde, proteger pacientes de intervenções infundadas. Isso requer compromisso com o escrutínio crítico, a transparência metodológica e a comunicação clara dos critérios que fundamentam a avaliação de evidências.

O verdadeiro ceticismo não é aquele que se refugia na dúvida para proteger crenças, mas aquele que está disposto a questioná-las de forma equitativa e proporcional. Ao aplicar esse entendimento às afirmações na área da saúde, podemos cultivar um diálogo mais honesto, baseado em evidências e comprometido com o bem-estar das pessoas.

André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto).

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