Mágica, mediunidade e crença

Apocalipse Now
27 nov 2021
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Um tema recorrente neste espaço são modas culturais e certas bobagens que se passavam por “ciência” no passado. Trato desses assuntos não para insinuar que a mentalidade do presente tem algum privilégio especial em termos de racionalidade, mas o contrário: se, com o distanciamento que a história traz, conseguimos ver os erros de nossos antepassados, de posse desses estudos de caso e com algum esforço, poderíamos talvez enxergar com maior clareza os erros do mesmo tipo que são cometidos hoje.

Caso: o editorial de abertura da edição de junho de 1875 do periódico carioca Revista Espirita – Publicação Mensal de Estudos Psychologicos (preservo aqui a ortografia da época) trazia o que, para o autor e seus leitores, devia soar como uma avaliação criteriosa da apresentação à imprensa, na capital do Império, do espetáculo mediúnico oferecido por dois visitantes americanos, William Fay (1840-1921) e Harry Keller (1849-1922). Entre os prodígios observados, pandeiros voadores e um artista que, mesmo amarrado por membros da plateia, consegue trocar de casaco. No escuro.

Vivia-se então a Era de Ouro da chamada “mediunidade física”, em que fenômenos como a levitação de objetos diversos, ou instrumentos musicais que se tocavam sozinhos eram vistos como sinal de contato com o Além. Apenas um ano antes, em 1874, o químico britânico William Crookes (1832-1919) havia concluído suas investigações sobre os médiuns físicos D.D. Home (1833-1886), Florence Cook (1856-1904) e Kate Fox (1837-1892) e os declarado genuínos.

A incompetência de Crookes como investigador paranormal viria a ser exposta anos mais tarde, quando outra médium “autenticada” por ele, Annie Eva Fay (1855-1927) explicou em detalhes para o mágico Harry Houdini (1874-1926) como havia enganado o eminente cientista. Hoje, as falhas técnicas – e, também, éticas – dos estudos espiritualistas de Crookes são amplamente reconhecidas. Em 1875, no entanto, seu trabalho era visto como respeitável, ainda que polêmico.

Mas, de volta à capital do Império. Afirma o estudioso de “psychologia” sobre Fay e Keller:

 

“...reconhecemos a faculdade medianimica do senhor Fay. É, pois, opinião nossa, ser elle um médium nocturno de efeitos physicos...”

 

Não se tratava de opinião açodada. O autor havia realizado alguns esforços para detectar truques, como ele mesmo descreve:

 

“Feitos os exames dos instrumentos, cordas, etc, foi o senhor Fay amarrado a uma cadeira á pouca distancia da mesa. Apenas se apagaram os bicos de gaz e em seguida as velas, tratamos de pôr em movimento o chapéo de sól, estendendo o nosso braço e corpo, de fórma tal que se alguma pessoa se aproximasse da mesa para segurar os instrumentos, essa seria presentida pelo choque que lhe havíamos de imprimir.

“Foi baldada essa nossa tentativa. Os instrumentos pozeram-se em movimento, e os sões d'elles, dentro em pouco, partiam de vários pontos do espaço. Depois de algum tempo o senhor Keller, que se achava assentado e seguro por um dos espectadores, riscou um phosphoro, e n’esse mesmo instante os instrumentos cahiram, em pontos diversos...”

 

Impressionante, talvez, mas pouco original. Fay e Keller (que em 1876 mudaria uma letra de seu nome artístico, tornando-se “Kellar”) haviam sido, nos Estados Unidos, assistentes dos lendários Irmãos Davenport, Ira Erastus (1839-1911) e William Henry (1841-1877), uma dupla inovadora de ilusionistas, responsável pela criação do truque do “gabinete espiritual”, um armário onde o suposto médium é amarrado – e permanece trancado – enquanto fenômenos “sobrenaturais” acontecem.

Após a morte de William, e já idoso, Ira Davenport tentou afastar-se do espiritualismo, declarando que ele e seu irmão jamais haviam alegado possuir poderes sobrenaturais ou espirituais, nem feito pregação espírita ou espiritualista; e que a mística do espetáculo de ambos residia exatamente na ambiguidade quanto ao assunto. Havia, é preciso dizer, algo de cínico nessa descrição: no início da carreira dos irmãos, suas apresentações eram sempre precedidas por um sermão dado por pastor espiritualista. Que a pregação não viesse diretamente de Ira ou William não parece assim tão relevante.

De qualquer modo, na época da “confissão” de Ira, mágicos profissionais, há tempos, já haviam desvendado os truques usados pelos irmãos. Ainda hoje, no entanto, há quem considere que os Davenport foram médiuns reais.

 

Tour latino

Depois de romper com os irmãos, Fay e Keller partiram numa turnê da América Latina, que Keller descreve num par de capítulos de seu livro autobiográfico de 1890, “A Magician’s Tour”. Os dois desceram o continente pela costa do Pacífico, e por isso entraram no Brasil pelo Rio Grande do Sul, onde, aparentemente, o renomeado Kellar foi iniciado na maçonaria, numa loja de Pelotas.

Em “A Magician’s Tour”, Kellar comenta ter feito uma performance para “os econômicos cafeicultores de Campinas” (imagino que não tenha conseguido vender muitos ingressos), mas que em compensação, no Rio de Janeiro, além de contar com o imperador Pedro II na audiência, viu cambistas venderem ingressos por “quatro ou cinco vezes o preço normal”, e ainda assim faltarem lugares no teatro.

Outro evento pitoresco da turnê brasileira teve lugar na Bahia, onde o palco foi apedrejado durante o número da “Dark Seance” (“a inconcebível sessão às escuras”, segundo o material publicitário em português distribuído na época), provavelmente a mesma sequência de truques que havia parecido tão convincente para o editorialista da Revista Espirita.

O curioso é que pelo menos uma biografia de Kellar afirma que ele e Fay jamais se apresentaram como médiuns, divergindo nisso dos Irmãos Davenport, que mantinham uma aura de mistério em torno da origem de seus “poderes”. Diz o livro: “Fay e Keller diziam ao público que os sons e objetos partindo do gabinete eram parte de um truque de mágica. Ao contrário dos Irmãos Davenport, deixavam claro que não havia fantasmas envolvidos” (“ The Amazing Harry Kellar”, de Gail Jarrow).

 

Contra os espíritos

De fato, Keller vinha desenvolvendo uma postura francamente hostil à própria ideia de mediunidade. Em 1878, durante uma passagem pela Índia e já usando o nome de “Kellar”, o mágico envolveu-se numa polêmica com os espiritualistas da colônia britânica de Calcutá (atual Mumbai), escrevendo para um jornal local que “eu inequivocamente e sem reservas declarou fraudes todos os assim chamados fenômenos do espiritualismo”. Em 1879, Kellar fez uma noite de denúncia dos truques dos médiuns, incluindo o gabinete dos Davenport, na cidade de Washington.

No mesmo ano, quase falido, resolveu retornar ao Rio de Janeiro. Ali reencontrou o sucesso financeiro, e o imperador voltou a prestigiar o espetáculo. Em “A Magician’s Tour”, essa segunda passagem pela capital brasileira aparece registrada em termos superlativos: para o mágico, a cidade “parecia ser o lugar mais maravilhoso da Terra”.

Anos mais tarde, a partir da segunda metade da década de 1890, Kellar viria a se consagrar o maior mágico de palco dos Estados Unidos, servindo até mesmo, segundo o escritor e historiador da mágica Walter Gibson (1897-1985), de modelo para o personagem Mágico de Oz.

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Em 1889, quando já se encontrava a caminho do estrelato, Kellar ainda aparecia em eventos dedicados a desmascarar fenômenos supostamente “mediúnicos”. Uma edição de The New York Times desse ano (datada de 25 de fevereiro) registra uma aparição do mágico ao lado da “médium arrependida” Carrie Sawyer, reproduzindo truques comuns de médiuns físicos.

Entre outras proezas, Sawyer, depois de convocar um comitê de três membros da plateia, “permitiu ao cavalheiro sentado ao seu lado segurar, ou pensar que segurava, suas mãos, e então fez violões tocarem, sinos badalarem e mãos espirituais aparecerem, tudo, ela mostrou depois, feito por si mesma com uma das mãos, enquanto o cavalheiro em posse de suas mãos inocentemente ignorava o fato de que uma havia escapado”.

Kellar também colaborou diretamente com a ciência, submetendo-se a uma série de experimentos conduzida pelo psicólogo Joseph Jastrow (1863-1944) para tentar determinar se mágicos profissionais teriam sentidos mais aguçados ou tempos de reação a estímulos menores do que pessoas não treinadas em mágica. O trabalho, inconclusivo, foi publicado na revista Science em 1896.

E quanto a William Fay, que tanto havia impressionado o editorialista da Revista Espirita em 1875? A dupla Fay & Keller se desfez depois que o navio que carregava a bagagem dos artistas – e os lucros que haviam ganhado no tour latino-americano, convertidos em ouro e diamantes – naufragou na costa francesa, levando para o fundo do mar o patrimônio da trupe. Desolado, Fay aceitou voltar a trabalhar para os Davenport, e depois de alguns anos acabou fixando moradia na Austrália.

Qual o erro do editorialista carioca? Sugiro dois, atuando em conjunto – em “sinergia”, como se diz atualmente: arrogância e enviesamento. A arrogância de achar que sua incapacidade de explicar um efeito – a troca de casaco de Fay – por meios naturais implica a inexistência de meios naturais. Já o enviesamento está em interpretar tudo o que se vê como evidência em reforço de uma conclusão desejada e pré-dfeterminada.

Operando conjuntamente, os erros convertem uma deficiência da imaginação – a incapacidade de conceber uma explicação – em virtudes teologais: esperança e fé. No nosso universo de fanatismos políticos e bolhas ideológicas, não deve ser difícil ver a pertinência desse obscuro vexame da Revista Espirita – Publicação Mensal de Estudos Psychologicos para os dias atuais.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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