Antroposofia e o racismo esotérico

Apocalipse Now
1 mai 2022
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A maioria das pessoas, no Brasil, que já teve algum contato superficial com a antroposofia, a “ciência espiritual” criada pelo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925) no início do século passado, provavelmente a encontrou em escolas Waldorf ou por meio da medicina antroposófica, modalidade alternativa (“integrativa e complementar”, segundo o eufemismo da moda) reconhecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Talvez algumas dessas pessoas também saibam que a pediatria antroposófica é uma fonte histórica de resistência à vacinação infantil.

Também é provável que, nesses encontros fortuitos, a antroposofia tenha sido apresentada como uma “filosofia alternativa” ou “visão holística de mundo”, não como uma forma de religiosidade pseudocientífica que afirma a realidade histórica do continente perdido de Atlântida, vê problemas de saúde como efeito de predisposições inatas trazidas de encarnações anteriores e considera certas formas de doença e sofrimento como elementos úteis, quando não necessários, para a limpeza do karma e o progresso entre encarnações — esta é uma das fontes da desconfiança em relação às vacinas, aliás.

Ainda, nas versões editadas para consumo público, Steiner costuma ser apresentado como “filósofo” ou “educador”, não como líder messiânico, ocultista, pseudocientista e defensor da supremacia branca: para ele, o grau de evolução espiritual do indivíduo se reflete na cor da pele (quanto mais clara, melhor; negros e ameríndios, por exemplo, seriam formas degeneradas).

Na evolução antroposófica, espíritos humanos vão reencarnando em corpos de pele e cabelos mais claros à medida que progridem. Cabelos loiros e olhos azuis causam inteligência. Genocídios podem ser necessários e bem-vindos: em seu livro “O Significado Oculto do Sangue”, Steiner pondera que “certos povos aborígenes precisam perecer no momento em que colonizadores chegam a sua parte do mundo”.

 

Anti-Darwin

Antes de prosseguir, um pouco de contexto. O século 19 já foi descrito como um de “crise de factualidade das religiões”: a prerrogativa de produzir fatos extraordinários e explicá-los foi deixando os sítios e livros sagrados e transferindo-se para laboratórios e livros de ciência. O movimento espiritualista foi uma primeira tentativa de vencer esse desconforto, por meio de conciliação e síntese. Com a publicação de “A Origem das Espécies” em 1859, no entanto, o que até então era um incômodo crescente explodiu, na cabeça de muitos, em conflito aberto.

O fundamentalismo bíblico e o movimento criacionista são dois produtos dessa leitura belicosa da situação, mas estão longe de ser os únicos. A crise intelectual também produziu “Teorias da Evolução” antidarwinianas, que negavam o agnosticismo materialista implícito nos mecanismos de variações aleatórias e seleção natural, e propunham um processo evolutivo mítico, guiado por forças e valores espirituais.

A mais bem-sucedida, ao menos do ponto de vista de apelo para o público, dessas evoluções alternativas foi a proposta por Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891), por meio da Sociedade Teosófica, fundada em 1875. A teosofia de Blavatsky era uma mistura de espiritismo, hinduísmo, budismo e ciência popular — isto é, a ciência da época, tal como filtrada por autores populares e (mal) compreendida pelo público em geral. Essa união de ciência “pop” e misticismo fez de Blavatsky uma inspiração perene para escritores de ficção científica — à primeira vista, seu livro “Doutrina Secreta” (1888) parece uma paródia da obra de HP Lovecraft (1890-1937). A verdade, claro, é o contrário: Lovecraft parodiava Blavatsky.

Vivia-se uma época em que supostas “diferenças raciais” eram vistas como chave para compreender diferenças históricas, culturais e até religiosas entre povos: Isaac Taylor (1829-1901), um influente clérigo anglicano, considerava que as divergências entre católicos e protestantes poderiam ser causadas por variações étnicas no formato da cabeça. Nesse clima, não surpreende que a teosofia incorporasse a noção pseudocientífica, mas então popular, de que diferentes estágios evolutivos da Humanidade seriam representados por diferentes raças.

 

Arianos

Na narrativa teosófica da evolução, seres humanos são entidades eminentemente espirituais cuja existência na Terra se dá em ciclos históricos, separados por cataclismos (a submersão da Atlântida, claro, sendo um deles). Cada ciclo é dominado por uma raça-raiz, com a qual convivem suas sub-raças e remanescentes, vagamente degenerados, das raças-raízes de ciclos anteriores. A “atual” raça raiz é a ariana.

“Raça ariana” é um conceito hoje obsoleto, lembrado mais pelo uso, por nazistas e supremacistas brancos, para se referirem a si mesmos. Até na época em que a locução era levada mais a sério, seu significado era difuso e impreciso. Em termos técnicos, aplicava-se às populações cuja língua nativa tivesse raiz indo-europeia, o que talvez explique a cooptação como sinônimo de “brancos não judeus”.

A teosofia adotou-o de forma inconsistente: às vezes parecia referir-se a um grau de evolução espiritual, dando a impressão de que as hierarquias raciais da doutrina diziam mais respeito à iluminação interior (“raças” da alma, digamos) do que à aparência física ou hereditariedade. Outras vezes, no entanto, havia referência direta a certos povos e grupos étnicos como mais ou menos avançados.

Essas ambiguidades permitiam que a doutrina fosse interpretada de diversas maneiras por pessoas de diferentes gostos e inclinações. Na Áustria e na Alemanha, alguns grupos teosóficos adaptaram — distorceram? — os ensinamentos de Blavatsky para criar a ariosofia, uma visão mística e épica do passado e do destino dos povos germânicos (“arianos”). Nesses grupos surgiu muito do que viria a ser adotado como iconografia e mitologia pelo nazismo.

Durante anos, Steiner foi a principal figura do movimento teosófico não só na Alemanha e na Áustria, mas também na Holanda e na Suíça. Ele rompeu com a Sociedade Tesófica em 1912, para fundar a antroposofia. A causa do cisma foi a decisão da liderança global da Sociedade Teosófica de proclamar que o menino indiano Jiddu Krishnamurti (1895-1986) era a nova encarnação de Cristo.

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Steiner manteve muito da “teoria da evolução” da teosofia em sua nova doutrina, mas substituiu o caráter cíclico da evolução teosófica por um de progresso contínuo, com raças superiores surgindo em resposta ao aperfeiçoamento espiritual da espécie, e raças inferiores sendo preservadas como “porta de entrada” para novas almas imaturas (no caso dos negros) ou como reservatório para espíritos estagnados, que se recusam a progredir (asiáticos e judeus). Raças podem se tornar obsoletas e genocídios não passam da ação das forças cósmicas que guiam a evolução humana, num processo de “eugenia cósmica”.

Sua obra dá a entender que o destino final da Humanidade será atingido quando todas as almas tiverem evoluído o suficiente para encarnar em corpos "alemães" (“a raça branca é a raça do futuro, a que cria o Espírito”, escreve ele) — e todas as demais tiverem desaparecido.

 

 

Antroposofia e vacina

Enquanto a teosofia se apresentava como uma espécie de interseção entre ciência e religião, Steiner afirmava claramente estar criando uma ciência própria — “ciência espiritual” — com valor epistêmico igual ao das ciências humanas e naturais. Isso pode soar divertido quando ele fala abobrinha sobre Atlântida e Lemúria (a menos que você seja arqueólogo, geólogo ou historiador), mas torna-se perigosíssimo quando o assunto é saúde.

Na obra fundadora da medicina antroposófica, escrita em parceria com a médica holandesa Ita Wegman (1876-1943),  lemos que certas técnicas de introspecção e meditação (ensinadas, é claro, por Steiner) oferecem acesso privilegiado a verdades espirituais (chamadas de “imaginações”, “inspirações” e “intuições”) que devem ser encaradas como fatos científicos. No tratado médico de Steiner e Wegman, diabete é causada por um adormecimento do ego; gota, por um excesso de espírito animal. O ego causa ainda a circulação do sangue.

Em linhas gerais, na visão antroposófica, o corpo humano é formado pelo que poderíamos chamar de quatro camadas: a física é aquela a que todos temos acesso e que a ciência de verdade estuda; as outras três são a etérea, a espiritual e a alma, ou ego. Plantas têm corpo físico e etéreo; animais irracionais, corpo físico, etéreo e espírito; seres humanos, corpo físico, etéreo, espiritual e ego.

Não se trata de metáfora ou poesia: a “ciência” antroposófica trata isso tudo literalmente, fantasiando (e descrevendo) relações complexas, às vezes em nível bioquímico, entre essas camadas, relações que o médico antroposófico precisa levar em consideração. Um diagnóstico apresentado no livro fundador da disciplina (intitulado “Ampliando a Arte Médica”) diz:

“Fraqueza geral da organização do ego resultando na expressão da atividade do corpo etéreo não ser suficientemente inibida pela organização do ego. Resultado, funções orgânicas vegetativas espalhando-se para a cabeça, sistema nervoso e sentidos…”

Em outros escritos, Steiner trata doenças infantis que, hoje, podem ser evitadas por meio de vacinas — como sarampo, por exemplo — como manifestações físicas de um aprimoramento espiritual, o que leva alguns médicos antroposóficos a supor que vacinas fazem mais mal do que bem, ao inibir o progresso da alma.

No Brasil, o médico infectologista Guido Carlos Levi menciona, em seu livro “Recusa de vacinas – Causas e consequências”, um surto de sarampo na cidade de São Paulo onde “alguns dos acometidos eram crianças com pais e/ou pediatras antroposóficos e, em consequência, não vacinados”.

Artigo publicado em 2013 na revista Arte Médica Ampliada, da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica, ao mesmo tempo em que reafirma o compromisso da associação com o calendário de vacinações infantis do Ministério da Saúde, aponta que, segundo a doutrina antroposófica, doenças como rubéola e sarampo podem ser benéficas para a criança.

De fato, Steiner considerava que até mesmo epidemias podiam ter um papel importante, e que avanços como saneamento básico talvez estivessem atrapalhando a evolução espiritual da espécie humana. Como até hoje faz muita gente que vive em saúde e conforto, ele também tinha a impressão de que a saúde e o conforto dos outros poderiam ser prejudiciais dentro do Grande Esquema das Coisas.

 

Futuro

Outros filhotes notórios da antroposofia são a agricultura biodinâmica (um movimento precursor da agricultura orgânica que adota práticas místicas e pseudocientíficas, como plantio segundo ciclos astrológicos e o uso de cristais para “energizar” o solo) e as escolas Waldorf.

O ensino Waldorf costuma ser elogiado por seu caráter lúdico, atencioso e pela preocupação com artes e música, mas escolas que adotam esse sistema têm sido criticadas em várias partes do mundo por desestimular vacinação, promover práticas pseudocientíficas, usar os conceitos pseudocientíficos de Steiner sobre reencarnação e o tempo de maturação das diferentes camadas humanas (etérea, espiritual, etc.) para definir práticas pedagógicas, em alguns casos, fazer proselitismo antroposófico, promover um “culto de Steiner” entre os alunos e usar material didático racista. Alguns desses problemas, denunciados principalmente no exterior, começam também a vir a público no Brasil (um caso de ação antivacinas aqui, e um de abuso moral aqui).

Defensores contemporâneos do legado de Rudolf Steiner buscam minimizar o papel de suas ideias místicas, oculistas e racistas e apontar um suposto “sentido mais profundo” em seu trabalho — uma linha comum é negar que ele fosse racista, e atribuir a acusação a leituras “superficiais” ou “fora de contexto” dos textos do guru (o historiador Peter Staudenmeier, que estudou o movimento antroposófico a fundo, aponta, em seu livro “Between Occultism and Nazism”, que edições “oficiais” da obra de Steiner, publicadas na década de 1990, vinham sistematicamente omitindo ou editando as passagens mais constrangedoras).

A tentativa de reconfigurar Steiner como filósofo/educador — nos moldes de, digamos, Maria Montessori (1870-1952), Jean Piaget (1896-1980) ou Paulo Freire (1921-1997) — esbarra, porém, tanto na autoimagem do próprio, que insistia em se apresentar como o dono de um acesso privilegiado à realidade etérea-espiritual, quanto no fato de que ele nunca foi realmente levado a sério fora de seu círculo de fãs esotéricos.

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Por exemplo, o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) não hesita, num ensaio publicado em 1932, em referir-se a Steiner como “farsante”, a seus pronunciamentos como “asneiras oleaginosas” e em tratar a antroposofia como prova do “fracasso da educação”. Outro importante crítico cultural da Alemanha entreguerras, Siegfried Kracauer (1889-1966), refere-se à antroposofia como uma doutrina inadequada para “pessoas de reflexão”.

Embora considere que a antroposofia ainda deve ao mundo uma crítica aberta e sincera do racismo esotérico de seu fundador (o que certas escolas Waldorf já fizeram, ainda que de forma tímida), Staudenmeier é mais generoso: ele vê chances de redenção na doutrina, que também enfatizava a importância do desenvolvimento individual e a capacidade universal do ser humano de aprimorar-se. O historiador pondera que o futuro da antroposofia não precisa ser escravo de seu passado.

Submeter textos que dizem e propõem atrocidades a reinterpretação criativa, para conciliá-los com o bom senso, a ética e a ciência é o arroz com feijão de boa parte da teologia liberal moderna, e de fração considerável do proselitismo político, também. Não há, a priori, motivos para que o mesmo processo não possa “salvar” a antroposofia de seus problemas conceituais e práticos mais salientes. A questão que fica é: mas salvar para quê?

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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