Estado laico e a pescaria de peixes pequenos

Apocalipse Now
13 ago 2022
Autor
Bruegel

 

Uma crítica que já teria me deixado careca de tanto ouvir – não fosse o bilhete que tirei na loteria genética que me mantém, até agora, cabeludo – é a de que as causas que abracei ao longo da vida seriam, todas, “peixe pequeno”. Ceticismo, combate a pseudociências, laicismo, promoção do pensamento crítico: tudo divisionismo ingênuo (criticar superstições populares afasta aliados em potencial) ou irrelevância (quem liga para homeopatia?).

O primeiro livro de não-ficção que escrevi, “O Livro dos Milagres”, é uma crítica histórica e filosófica ao próprio conceito religioso de “milagre”. O primeiro artigo que fui convidado a publicar num espaço nobre de um grande jornal criticava a presença da expressão “Deus seja louvado” no dinheiro brasileiro. Depois ainda escrevi um livro sobre as asneiras da astrologia (além de um monte de artigos a respeito do mesmo assunto).

A cada uma dessas publicações, encontrei gente que discordava de mim, o que é normal e esperado, mas também gente que concordava em princípio, ou em abstrato, mas discordava na prática – fosse por razões táticas (não melindrar aliados), culturais (“respeito ao outro”, “o Brasil é assim mesmo”) ou com o argumento do “peixe pequeno”.

Cada argumento desses merece (e tem) uma resposta, mas hoje vou me concentrar no último. A conversa de “peixe pequeno”, não raro, mistura covardia, comodismo e má-fé, que se escondem por trás da máscara da suposta “irrelevância” do problema. É a covardia de enfrentar as forças que se beneficiam do status quo, o comodismo de quem se sente bem integrado, confortável com ele, e a má-fé de quem, mesmo reconhecendo que a situação é errada ou injusta, espera beneficiar-se dela.

 

De lambari a tubarão

O Estado laico é uma velha vítima dessa tríade. O desrespeito ao laicismo não parecia, para a nossa elite da sensatez – os comentaristas e lideranças que pautam o debate público –, um problema grave o suficiente para entrar na lista das “grandes questões” quando os tribunais superiores se reuniam (como ainda se reúnem) sob um crucifixo. Nem quando uma invocação religiosa foi impressa no dinheiro.

O peixe laico seguia sendo encarado mais como lambari do que tubarão quando o Brasil embarcou de vez na fantasia geopolítica de que a Igreja Católica é um país (e até quando isso levou, “por isonomia”, à emissão de passaportes diplomáticos para vendilhões da fé). Posição mantida enquanto obras de arte, filmes e revistas eram censurados por ferir certas “sensibilidades” privilegiadas, ou quando o Ministério Público Federal tentou, anos atrás, impedir pesquisas científicas que agrediam a fé pessoal de seu então titular. Que não mudou nem quando o ensino religioso confessional com dinheiro público foi referendado. Ou quando a “cura” de dependentes químicos começou a ser entregue a entidades confessionais.

A turma do lambari seguiu preocupada com coisa mais importante até mesmo quando famílias foram separadas por perseguição religiosa. Agora, de repente, quando a estrutura do governo federal é usada para promover discurso religioso de ódio, alguns dos “porta-vozes da sensatez” começam (parece) a se dar conta de que o peixe, talvez, tenha crescido enquanto eles estavam lá preocupados com “o que realmente interessa”.

 

Não pega

É lugar-comum dizer que no Brasil há leis que “não pegam”, que estão no Diário Oficial mas que ninguém se dá ao trabalho de fazer valer. Mas o país também tem princípios que não pegam: regras gerais da convivência civilizada que (quase) todo mundo concorda que são importantes, mas pelos quais ninguém, exceto quem se incomoda com peixes pequenos, parece estar disposto a mover uma única palha.

O laicismo é um desses órfãos. Todo mundo é a favor dele até o momento em que alguma denominação religiosa vê uma oportunidade de explorar a máquina pública, ou em que um candidato ao controle da máquina pública vê uma oportunidade de explorar alguma denominação religiosa. Quando ocorre a manipulação confessional do Estado, a fé usa, mas também é usada. E esse último ponto deveria bastar para que os religiosos sinceros se unissem às fileiras do laicismo.

Mas, afinal, o que é laicismo? Há líderes religiosos, principalmente (mas não só) nas fileiras mais conservadoras e fundamentalistas, que insistem, por malícia ou ignorância, que um “Estado laico” é um “Estado ateu”. Nada mais falso. Um “Estado ateu”, no limite, reprime a religião ou, no mínimo, estimula e privilegia o ateísmo.

Um “Estado laico” se mantém neutro diante das religiões e das posições filosóficas do teísmo e do ateísmo. Num Estado laico, a força do Estado (suas armas, suas verbas, suas leis) não pode ou deve ser mobilizada para privilegiar uma religião em detrimento de outras, ou um tipo de posição de consciência ou metafísica (teísmo ou ateísmo, por exemplo) em detrimento de outros.

E por que essa neutralidade é importante? Para preservar a paz social e a liberdade individual. Paz social, porque garante que nenhuma religião usará os recursos do Estado para perseguir e reprimir as demais; liberdade individual, porque garante que nenhum cidadão será forçado pelo governo a ter (ou abandonar) uma fé qualquer.

No Brasil, em meio à perversa “cordialidade” nacional, muitos tentam garantir a paz não negando às diferentes fés o acesso ao poder estatal, mas tentando distribuí-lo (salomonicamente?) entre todas: como na utopia da corrupção política, a ideia é de que, com jeitinho, haverá boquinhas para todos e, de barriga cheia, ninguém vai ter do que reclamar. Na prática, o que se vê são disputas renhidas por quinhões cada vez maiores de benesses – além da crescente violência contra os que menos podem nessa briga, caso dos cultos afro-brasileiros.

Já a questão da liberdade é redefinida de modo cruel – o Estado passa a ser acusado de “interferir na liberdade religiosa” não porque teria imposto uma fé a alguém, mas por impedir que religiosos imponham sua fé a terceiros, ou que cometam, em nome da fé, crimes de discriminação e preconceito.

 

 

Redimensionando o peixe

Nos últimos 100 anos, talvez a melhor formulação do princípio da laicidade, e dos motivos por trás dele, seja a apresentada no discurso feito pelo então candidato à Presidência dos EUA, John F. Kennedy, em 12 de setembro de 1960, na Associação de Ministros Religiosos da Grande Houston. O trecho crucial aparece nos dois parágrafos abaixo:

 

“Eu acredito em uma América onde a separação entre Igreja e Estado é absoluta, onde nenhum prelado católico dirá ao presidente (se este for católico) como agir, e nenhum ministro protestante dirá a seus fiéis como votar; onde nenhuma igreja ou escola religiosa receberá verbas públicas ou favores políticos; e onde nenhum homem será rejeitado para um cargo público apenas porque sua religião difere da do presidente que poderia nomeá-lo, ou da do povo que poderia elegê-lo.

“Eu acredito em uma América que não é, oficialmente, nem católica, nem protestante, nem judaica; onde nenhuma autoridade pública pede ou acata instruções sobre políticas públicas do papa, do Conselho Nacional de Igrejas ou de qualquer outra fonte eclesiástica; onde nenhum corpo religioso busca impor sua vontade, direta ou indiretamente, à população ou aos atos das autoridades públicas; e onde a liberdade religiosa é tão indivisível que um ato contra uma igreja será tratado como um ato contra todas”.

 

Transposto para o Brasil de hoje, esse discurso de mais de sessenta anos soa radical e revolucionário. É duvidoso que algum dos candidatos atuais à Presidência da República estivesse – por convicção pessoal ou cálculo político – disposto a repeti-lo. Seria suicídio eleitoral. Este é o peixe que, hoje, presos entre o veto ao debate sobre aborto e as milícias "de Jesus", temos de engolir.

 

Tamanho único

Minha reação mais comum à ladainha do “peixe pequeno” é dizer que já tem gente demais tratando dos grandes, então por favor deixem-me me paz com minhas supostas irrelevâncias. Na intimidade, espanta-me que tanta gente não enxergue – ou prefira não enxergar – os nexos lógicos entre o “irrelevante” de ontem (laicismo frouxo) e o urgente de hoje (intolerância religiosa bancada com dinheiro público).

Muitos membros da elite da sensatez parecem prontos a, ao menos, contemplar a possibilidade de o discurso do presidente sobre fuzis e suas “piadas” grosseiras estarem estimulando a violência armada e a homofobia, mas seguem incapazes (ou indispostos) de conectar, por exemplo, a tolerância a terapias sem base científica no SUS ao CFM “cloroquiner” (se o que define verdade em saúde é assembleia e canetada, não ciência, por que a sua turma e a sua caneta valeriam mais do que as minhas?), ou ligar a condescendência para com a astrologia e outras formas esotéricas à exploração econômica de vulneráveis e idosos: para alguém cair num golpe de “falsa vidente”, ora bolas, é pré-requisito acreditar que existem videntes reais – crença que ganha tração e aceitação social quando as pessoas mais bem equipadas e posicionadas para criticá-la se omitem, ou atacam quem chama para si a responsabilidade, porque lhes parece conveniente rotular o problema de “peixe pequeno”.

Enfim, todo peixe é pequeno – até que foge do aquário e vira o elefante na sala.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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