Comunidades terapêuticas: a “cura”, e o dinheiro público, nas mãos de Deus

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10 ago 2022
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Questão multifacetada e multifatorial, o uso, e abuso, de drogas costuma ser objeto de respostas unidimensionais, como se uma “solução” fosse capaz de abranger toda sua complexidade. Um exemplo é o proibicionismo, política adotada em âmbito global a partir da assinatura, em 1961, da primeira convenção internacional sobre o assunto nas Nações Unidas, dando origem ao que ficou conhecido como “guerra às drogas”, que fracassou estrondosamente em seu objetivo de eliminar a produção e comércio de substâncias apontadas como “ilegais” – e, efetivamente, entregou este lucrativo mercado nas mãos de organizações criminosas.

Visão que, no lado do consumo, se traduz na defesa da abstinência, com a criminalização e estigmatização dos usuários. Abordagem que está no cerne da atuação das chamadas “comunidades terapêuticas” (CTs), instituições dedicadas ao atendimento de pessoas com uso problemático de drogas que se tornaram o foco da política nacional para a área nos últimos anos. Em grande parte mantidas e administradas por organizações religiosas, estas comunidades foram alvo de diversas denúncias de violações dos direitos humanos de seus “internados”, ao mesmo tempo que os gastos públicos com sua utilização explodiram.

De olho nisso, Paula Napolião e Giulia Castro, pesquisadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, decidiram investigar a atuação destas instituições e a visão que seus gestores e funcionários têm delas, a partir de uma amostra qualitativa de comunidades terapêuticas em operação na capital fluminense. Sua pesquisa de campo revelou que embora a aposta do Estado nesta abordagem tenha deflagrado um discurso de que as comunidades estão se modernizando e profissionalizando, para melhor atender aos usuários, isto ainda pouco resultou na prática.

Segundo elas, estas instituições mantêm praticamente intocado o modelo de “tratamento” baseado na abstinência e no isolamento social, conduzido primariamente por pessoas sem formação ou treinamento específico, num projeto de “transformação do eu” fundamentado em padrões morais e religiosos que ligam a dependência à fraqueza e a desvios éticos, com a “espiritualidade” vinculada servindo de veículo de catequese das igrejas que as apoiam.

“Essa é apenas uma entre muitas formas possíveis de abordar a questão do uso problemático de drogas e não há evidência de que seja a mais eficaz. Mesmo assim, é a estratégia que mais tem ganhado terreno na área da política de drogas no país, sobretudo considerando-se o apoio do Estado às comunidades terapêuticas (CTs) – instituições privadas, na maioria com forte viés religioso, não ligadas ao Sistema Único de Saúde nem ao Sistema Único de Assistência Social, e alvo de denúncias de violações de direitos humanos”, escrevem no relatório da pesquisa, intitulado “Imposição da fé como política pública: comunidades terapêuticas no Rio de Janeiro” e lançado em 25 de julho último.

“A aposta num único método para lidar com fenômeno tão complexo, que envolve questões individuais, sociais e econômicas, representa um perigoso estreitamento do repertório de possibilidades de assistência aos que fazem uso problemático de drogas, cujas condições e necessidades são, por definição, diversas", aponta o texto. "Essa opção torna-se ainda mais discutível quando governos delegam a tarefa a entidades de contornos indeterminados e constituição ambígua, mistos de clínica e igreja, despejando nelas grande volume de recursos públicos sem contrapartida da avaliação sistemática de resultados ou da fiscalização efetiva do seu funcionamento”.

 

Origens, tamanho e gastos públicos

As primeiras comunidades terapêuticas do Brasil foram abertas ao longo das décadas de 1960 e 1970, mas foi só a partir dos anos 1990 que seu número começou a crescer de forma significativa. Crescimento que ganhou novo impulso em 2011, com o lançamento do programa federal “Crack, é possível vencer”, com foco justamente na abstinência e no isolamento social, e pelo qual o governo passou a financiar vagas nestas instituições para “pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas”.

Faltam, no entanto, pesquisas recentes quanto ao tamanho do universo de comunidades terapêuticas no país, ressalvam as autoras. Levantamento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2017 – mas baseado em cadastro de 2009 – aponta para a existência de cerca de 2 mil instituições do tipo no país, concentradas principalmente em São Paulo (420), Minas Gerais (com 275) e Rio Grande do Sul (234). Já o estado do Rio de Janeiro contava, então, com apenas 75 delas.

Com relação ao uso de recursos públicos, porém, há mais dados. Elas citam trabalho recente que analisou a evolução dos gastos federais com comunidades terapêuticas entre 2010 e 2019, e mostrou grandes oscilações anuais, com picos de repasses em 2014 (R$ 104 milhões) e em 2018 (R$ 119 milhões), período que coincidiu com significativa redução de verbas para os serviços públicos de base comunitária no campo da saúde mental, álcool e outras drogas. “Ou seja, o apoio governamental às CTs tem crescido em um cenário no qual se percebe o esvaziamento dos outros modelos de assistência aos usuários problemáticos de substâncias psicoativas”, destacam.

O processo acelerou durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro. Dados obtidos pela dupla mostram que, no início de 2018, o governo federal financiava 2,9 mil vagas nestas instituições, número que saltou para 10.657 em 2021, com meta de chegar a 24.320 este ano (comunicado recente do Ministério da Cidadania dá conta que já se alcançam 16.963 vagas em 684 comunidades terapêuticas espalhadas pelo país). Assim, frisam as autoras, se até 2018 o montante transferido a tais entidades era, em média, de R$ 40 milhões por ano, o valor repassado pelo atual governo em 2020-21 chegou a R$ 193,2 milhões de reais, ou seja, uma média anual de quase R$ 97 milhões.

Um terceiro levantamento citado pela dupla aponta uma injeção, em comunidades terapêuticas, de recursos púbicos da ordem de R$ 300 milhões entre 2017 e 2020, levando em conta apenas as transferências federais diretas, e de R$ 560 milhões quando se acrescentam valores repassados via governos estaduais e prefeituras. Pior, este mesmo trabalho considera que o atual modelo de financiamento público destas instituições é uma “a política com deficit de planejamento, de controle e de avaliação”. “Não há clareza sobre o tipo de serviço contratado, sobre a composição de seu custo, dos seus insumos, dos produtos esperados e, principalmente, de seu impacto e de sua efetividade”, acrescenta a publicação da organização Conectas Direitos Humanos em parceria com o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

E embora já recebessem recursos públicos, só em 2015 as comunidades terapêuticas foram regulamentadas pelo Conselho Nacional Sobre Drogas (Conad), que as definiu como “pessoas jurídicas, sem fins lucrativos” que “realizam o acolhimento de pessoas com problemas associados ao uso nocivo ou dependência de substância psicoativa”, lembram as autoras.

A regulamentação estabeleceu padrões para seu funcionamento, entre eles: adesão e permanência voluntárias, formalizadas por escrito, entendidas como uma etapa transitória para a reinserção sociofamiliar e econômica do acolhido; com abrigo em um ambiente residencial de caráter transitório, propício à formação de vínculos com a convivência entre os pares; e no qual seria provido um programa de acolhimento com oferta de atividades focadas na promoção do desenvolvimento pessoal de indivíduos em situação de vulnerabilidade, com problemas associados ao abuso ou dependência de substâncias psicoativas.

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Além disso, o documento determinava outras obrigações e restrições às comunidades terapêuticas, como permitir a visita de familiares; respeitar direitos humanos; não aplicar contenção física ou medicamentosa, nem manter trancas ou grades; dispor de equipe de atendimento multidisciplinar com capacitação permanente; elaborar planos, programas e relatórios; comunicar aos órgãos de saúde e proteção social atuantes no território o início e o fim de cada “acolhimento”; observar normas de segurança sanitária e acessibilidade; e fornecer alimentação, condições de higiene e alojamentos adequados.

“Com efeito, a Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, sancionada pelo presidente da República em 2003, valorizava a multiplicidade de abordagens ao problema e reconhecia a singularidade de perfis e demandas dos diferentes usuários, além da necessidade de respeitar seus direitos e decisões. Dessa perspectiva, a abstinência não era vista como caminho único, a ser imposto por políticas públicas, mas uma escolha entre outras, num repertório variado que incluía, por exemplo, diversas estratégias de redução de danos”, lembram.

Mas se até 2009 o aumento dos recursos federais repassados para programas de saúde mental, álcool e outras drogas se refletiu num crescimento expressivo das ações extra-hospitalares e comunitárias, o ano de 2019 marca uma forte acentuação da tendência de apoio do Estado à “remanicomialização” da saúde mental, particularmente no tratamento do uso de drogas. Publicada naquele ano, a nova Lei de Drogas alterou a legislação que materializava importantes conquistas da Reforma Psiquiátrica, e a nova Política Nacional sobre Drogas passou a mencionar as CTs explicitamente como objeto não só de regulamentação, mas também de incentivo financeiro, destaca a dupla.

“No mesmo ano, em nota técnica confirmadora dessa política, o Ministério da Saúde praticamente ‘revoga’ a orientação da multiplicidade de abordagens e apoia de forma aberta a exigência de abstinência como forma de tratamento para pessoas com uso problemático de drogas. Para colocá-la em prática, recomenda o recurso prioritário a hospitais psiquiátricos, clínicas de reabilitação e comunidades terapêuticas”, avaliam.

 

Realidade longe do ideal

E foi o que as autoras observaram em sua pesquisa de campo. Apesar de reconhecerem que, diante da insuficiência e precariedade dos serviços públicos, as comunidades terapêuticas muitas vezes são a única alternativa que pessoas pobres têm acesso, quando se encontram em situações extremas relacionadas ao uso problemático de drogas, as pesquisadoras ressalvam que, de modo geral, as avaliações da literatura científica sobre este o modelo de “tratamento” são críticas, sobretudo quanto ao uso como base de políticas públicas.

Segundo a dupla, nas entrevistas com dirigentes e integrantes das equipes das CTs visitadas na pesquisa apareceu, com frequência a ideia, de que estaria em curso uma transição de um modelo assentado na prática religiosa e em experiências individuais dos gestores para um mais “técnico”. Este movimento seria uma resposta à consolidação destas instituições como principal aposta do governo para lidar com o uso problemático de drogas, que está exigindo delas, ao menos em tese, a adaptação a um conjunto de requisitos que devem atender para poderem receber recursos públicos.

“Ou seja, haveria teoricamente um efeito benéfico, ‘modernizador’, na institucionalização das comunidades terapêuticas, transportando-as do limbo privado e confessional para o espaço das políticas públicas, supostamente mais transparentes e racionais”, comentam. “Entretanto, as observações feitas nas nossas visitas e o material bibliográfico consultado sugerem que o novo cenário pode estar provocando alguma adaptação no discurso, nas práticas e nas percepções dos operadores das CTs, mas que se tratam de ajustes superficiais, que pouco transformam substancialmente os pressupostos ou os modos de funcionamento dessas instituições”.

As autoras seguem então para relatar como foi estruturada e quais foram os resultados desta sua pesquisa de campo. Após identificarem, ainda no início de 2020, o universo das comunidades terapêuticas no estado do Rio de Janeiro - 109, espalhadas por 16 municípios fluminenses, sendo 38 na capital -, elas realizaram entrevistas por telefone ou vídeo com 24 dirigentes destas instituições e três funcionários de órgãos reguladores e fiscalizadores (Vigilância Sanitária do Município do Rio de Janeiro, Subsecretaria de Prevenção à Dependência Química do Estado do Rio e Coordenadoria de Cuidado e Prevenção às Drogas do Município do Rio) com o objetivo de traçar um panorama preliminar de quais são e como funcionam tais entidades; qual a percepção de seus gestores sobre o trabalho que fazem e qual seu posicionamento quanto à transformação das CTs em instrumentos de política pública.

A pandemia de COVID-19, porém, obrigou a dupla a adiar as visitas de campo, só realizadas a partir de setembro de 2021, com o avanço da vacinação contra a doença. Devido a limitações de deslocamento, elas focaram esta etapa da pesquisa em instituições sediadas na capital fluminense e habilitadas a receber financiamento público federal, estadual ou municipal, em quatro editais então em vigor destas três esferas de governo: 01/2018, do Ministério da Justiça; 17/2019, do Ministério da Cidadania; 01/2019, da Secretaria Municipal de Ordem Pública do Rio de Janeiro; e 01/2020, da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro.

“A opção de visitar apenas CTs aptas a receber verbas públicas derivou da tentativa de entender como tais entidades vêm (ou não) respondendo às exigências da legislação em vigor e como gestores e profissionais que nelas atuam percebem o processo de transformação das suas instituições em objeto de financiamento do Estado”, explicam.

Deste modo, elas chegaram a 22 instituições, das quais dez foram selecionadas para visitas. Nove gestores concordaram em participar da pesquisa e um recusou, dizendo que a unidade estava em obras. Das participantes, duas eram ligadas à Igreja Católica, e as demais a diferentes denominações evangélicas. Seis estavam em áreas urbanizadas (três delas em favelas) e outras três eram sítios localizados na Zona Oeste da cidade. As visitas aconteceram ao longo de três meses, consistindo em percorrer os espaços físicos das CTs e entrevistar, no local, os dirigentes e outros integrantes das equipes de trabalho.

“Os primeiros contatos com dirigentes e outros membros das equipes deram-se por meio de ligações telefônicas ou mensagens de WhatsApp. Quase sempre a resposta foi rápida e, com exceção da recusa já mencionada, todos foram solícitos e mostraram-se interessados em participar do estudo. Essa postura aberta, nem sempre verificada em pesquisas de campo, parece estar relacionada à necessidade de divulgar o trabalho feito nas CTs, além de sustentar o discurso de que elas realizam uma tarefa fundamental e de utilidade pública”, comentam as pesquisadoras.

Ainda de acordo com as autoras, embora não tenham enfrentado restrições no contato com os internos das CTs e as visitas presenciais tenham possibilitado observá-los em diversos momentos, espaços e atividades, elas optaram por se concentrar na autopercepção dos gestores e funcionários sobre o trabalho que realizam, buscando entender como enxergam a atuação de suas instituições e suas reações às exigências dos editais de financiamento e à atuação dos órgãos de fiscalização, bem como suas opiniões sobre o consumo de drogas, o “tratamento” baseado na abstinência e abordagens alternativas, e como conciliam a dimensão moral-religiosa quase sempre presente neste modelo de “tratamento” com a racionalidade técnico-científica que, ao menos em tese, deveria inspirar políticas públicas para usuários de substâncias psicoativas.

Segundo elas, confirmando a literatura sobre o tema, foi possível perceber uma grande heterogeneidade entre as CTs, o que coloca em questão o próprio rótulo de “comunidade terapêutica”, genericamente utilizado para defini-las como instrumento de políticas para usuários problemáticos de drogas.

olho que tudo vê

 

“Mesmo dentro do universo restrito das CTs visitadas, todas aptas a receber recursos governamentais, o termo adquire significados diversos no discurso dos operadores, e parece continuar servindo como um amplo guarda-chuva para abrigar espaços, orientações e atividades muito variados, a despeito da padronização supostamente promovida pelo processo de habilitação”, observam.

 

 

Sem obrigação 

Assim, também variou muito a forma como as instituições prestam seu atendimento, tanto em termos de tamanho e estrutura física quanto à composição das equipes, aos tipos de atividades desenvolvidas e a orientação sobre o “tratamento” preconizado. Das nove comunidades analisadas, por exemplo, as pesquisadoras relatam que duas tinham amplos terrenos arborizados, com área de lazer, e uma delas dispunha até de piscina e campo de futebol. Nas demais, porém, o espaço de convivência se limitava ora a salas com televisão, ora a espaços de leitura ou mesmo pequenos pátios.

Outro problema detectado por elas foi na capacitação das equipes para o atendimento que se propõem. Pela regulamentação em vigor, as comunidades terapêuticas são obrigadas a manter um “responsável técnico” com ensino superior à frente dos trabalhos. Em quatro das instituições visitadas, no entanto, esse responsável não era o coordenador da CT e tampouco participava de sua rotina, limitando-se a responder legalmente por ela, se necessário, e a assinar a documentação exigida.

“Quem efetivamente comanda o dia a dia é o dirigente ou ‘gestor’, quase sempre um dos criadores da CT, oriundo de alguma igreja e com frequência mantendo ainda uma relação próxima com instituições confessionais”, contam.

Mais que isso, este “responsável técnico” não precisa ser necessariamente um psicólogo ou outro profissional de saúde mental, nem a equipe ter alguma especialização no atendimento de usuários problemáticos de drogas. Apesar de a maioria das comunidades terapêuticas funcionar com trabalho voluntário de psicólogos, professores e assistentes sociais, a sua regulamentação é pouco clara quanto à formação dos profissionais que devem ter, e em apenas uma das instituições visitadas por elas foi informada a realização de avaliações técnicas por psicólogos ou assistentes sociais para mensurar o progresso do “tratamento”.

A resolução de 2015 do Conad mencionada pelas autoras, por exemplo, diz apenas que é obrigação da instituição manter uma “equipe multidisciplinar com formação condizente com as atividades oferecidas no Programa de Acolhimento (...) sob responsabilidade de um profissional de nível superior legalmente habilitado, bem como substituto com a mesma qualificação”. Outro documento importante citado por elas, a RDC 29 da Anvisa de 2011, também define a equipe profissional das CTs de forma genérica, sem especificar a quantidade ou a formação dos profissionais, prevendo apenas que “as instituições devem manter recursos humanos em período integral, em número compatível com as atividades desenvolvidas”.

“Note-se que os documentos normativos de 2015 e 2019 adotam o termo ‘acolhimento’, e não ‘tratamento’, para designar o trabalho específico das CTs”, acrescentam. “O intuito, aparentemente, é diferenciá-las das clínicas que também atendem usuários problemáticos de drogas, mas que se definem e organizam hierarquicamente nos moldes das instituições médicas. Segundo a definição oficial, o foco das CTs não é a assistência médica, e sim a convivência entre pares e a ‘promoção do desenvolvimento pessoal’ do indivíduo”.

De fato, destacam as pesquisadoras, estas instituições não são formalmente conceituadas como serviço de saúde, e sim como serviço de promoção à saúde e, mesmo fazendo parte da Rede de Atenção Psicossocial, com a classificação de “Comunidades Terapêuticas Acolhedoras”, não pertencem nem à estrutura Sistema Único de Saúde nem à do Sistema Único de Assistência Social, sendo oficialmente definidas como “equipamentos da rede suplementar de atenção, recuperação e reinserção social de dependentes de substâncias psicoativas”, e integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.

“A localização institucional dessas entidades nos sistemas federais é, como se vê, bastante ambígua, refletindo e ao mesmo tempo reforçando a ‘zona de indeterminação’ em que operam e proliferam as comunidades terapêuticas no Brasil”, avaliam.

As pesquisadoras apontam como outro reforço às ambiguidades e contradições em torno das comunidades terapêuticas a referência dos documentos normativos à “espiritualidade” como parte do processo de “recuperação” dos usuários. Elas citam como exemplo a resolução do Conad de 2015, cujo artigo 14º define “atividades de desenvolvimento da espiritualidade” como “aquelas que buscam o autoconhecimento e o desenvolvimento interior, a partir da visão holística do ser humano, podendo ser parte do método de recuperação, objetivando o fortalecimento de valores fundamentais para a vida social e pessoal, assegurado o disposto nos incisos VI e VII do art. 5º da Constituição”.

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“Não se menciona explicitamente o tema da religião, pois isso violaria a ‘inviolável liberdade de consciência e de crença’ garantida no inciso VI da Carta de 1988, mas apresenta-se uma definição suficientemente ampla e elástica para que caibam nessas atividades a catequese e a doutrinação moral”, frisam. “Que essa postura esteja incluída em políticas públicas, considerando-se que a maior parte das CTs se origina de igrejas e permanece ligada a elas, parece refletir o avanço da influência de grupos religiosos na estrutura de poder do país, um fenômeno que põe em xeque o princípio democrático do Estado laico”.

 

Nas mãos de Deus

Desta forma, apontam as pesquisadoras, o dia a dia nas comunidades terapêuticas continua a girar primariamente em torno de temas religiosos, mesmo que o acolhimento não se restrinja a praticantes da religião ali professada, com os entrevistados afirmando que o “acolhido” não pode deixar de exercer sua “espiritualidade” nem deixar de conectar-se a um “poder superior”, já que este é um dos pilares do “tratamento” ofertado.

“A contradição é flagrante: se o ‘tratamento’ tem como uma de suas bases a chamada ‘espiritualidade’, assentada no princípio de que ‘não adianta’ negar a regência de um ‘poder superior’, e se práticas religiosas cristãs são parte da rotina do referido ‘tratamento’, onde ficam a adesão voluntária e, consequentemente, o direito fundamental à liberdade de crença, que inclui diversas religiões não cristãs, além do ateísmo e do agnosticismo?”, questionam. “Não obstante os discursos técnicos – quando há – e as atividades consideradas ‘terapêuticas’, trata-se frequentemente de espaços de atuação de igrejas, nos quais elas buscam realizar sua obra de ‘conquista, moralização e disciplinamento das subjetividades’”.

Para as autoras do estudo, o forte viés religioso bloqueia em diversos âmbitos qualquer debate mais aprofundado, baseado em critérios técnico-científicos, sobre as CTs e sobre a política de drogas em geral, com o fato de estas instituições realizarem um trabalho visto como de assistência a pessoas pobres – muitas vezes em locais onde os serviços públicos são notoriamente incipientes – sendo invocado para legitimar sua presença e atuação num campo que deveria ser o da saúde e da assistência públicas.

Assim, contam, embora os gestores e funcionários entrevistados tenham garantido que os “acolhidos” têm consultas periódicas com psicólogos e, em alguns casos, atendimento por assistentes sociais, a frequência desse acompanhamento varia muito de acordo com a disponibilidade da equipe técnica de cada local, podendo ser rotineira em alguns casos e esporádica em outros, com grandes intervalos de tempo entre as consultas. Só uma das instituições informou que os internos que necessitam de acompanhamento são conduzidos quinzenalmente a um psiquiatra que cobra valores inferiores aos de mercado.

E o mesmo vale para a assistência médica. Por não serem consideradas serviços de saúde, e sim de “apoio à saúde”, as comunidades terapêuticas não são obrigadas a manter médicos e enfermeiros em seu quadro profissional. Em geral, elas dependem de trabalho voluntário de profissionais de saúde para atender os “acolhidos”, ou de parcerias com clínicas privadas que praticam trabalho beneficente. Então, na maioria delas, os responsáveis pela administração de medicamentos são os próprios coordenadores e funcionários das unidades.

“Numa delas, relatou-se o emprego de ansiolítico para conter uma pessoa ‘visivelmente alterada’ em função, supostamente, da abstinência. A decisão foi tomada por uma funcionária da casa com base na ‘observação do dia a dia’, sem prescrição médica”, exemplificam.

Mesmo assim, a eventual presença de uma equipe técnica acaba sendo usada como justificativa para que o “tratamento” fique restrito à própria instituição, evitando acesso frequente a outros serviços com orientações distintas delas, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), os CAPSad (Álcool e Drogas) e órgãos públicos que executam políticas de habitação, trabalho, renda e educação.

“A limitação do acesso a tais serviços não só reduz o repertório de possibilidades de reinserção do ‘acolhido’ como configura violação de direitos e imposição autoritária de uma única perspectiva”, comentam as autoras, para então citar um um trecho de entrevista com uma técnica de uma das CTs visitadas que explicita bem esta visão: “geralmente, quando os nossos acolhidos vão pra lá [para o CAPS], eles vêm com uma visão assim..., um entendimento diferente do nosso, então meio que choca, né? Eu acho que vai até facilitar agora a psicóloga que vai estar trabalhando conosco, porque eu acho que ela pode ficar com essa parte da Psicologia, a gente vai falar a mesma linguagem, e aí talvez a gente não utilize mais o equipamento do CAPS para a área de Psicologia”.

olhos que tudo veem

Diante disso, acrescentam, mesmo que a regulamentação e as regras dos editais públicos estejam levando a algumas adequações do espaço físico, das rotinas e do quadro técnico das comunidades terapêuticas, e até mudanças na compreensão sobre o uso problemático de drogas, ou pelo menos nos termos usados para referir-se a ele, como a substituição de “vício” por “dependência”, que expressaria um deslocamento da noção de “desvio moral” para a de “doença”, este esforço de exibir uma postura mais “moderna” parece muitas vezes acentuar a profunda ambiguidade que está na própria constituição destas instituições, originárias em grande parte de igrejas. A despeito dos discursos de mudança.

“A religião continua ocupando o centro do ‘tratamento’ ofertado: prevalecem analogias religiosas nas ‘explicações’ sobre o uso problemático de drogas e é sobretudo ao desígnio divino que se atribui o sucesso da ‘cura’. Segundo disse um entrevistado, ‘99% [é] Deus quem faz!’ (gestor e pastor da CT ‘D’)”, relatam.

“Resumindo: tratam-se em grande parte de instituições que surgiram dentro de igrejas e que vêm conquistando espaço no campo de atenção ao uso problemático de drogas, graças, sobretudo, à sua aproximação com órgãos públicos e à sua inclusão privilegiada nas políticas de drogas nacionais e locais, com a consequente possibilidade de obter recursos do Estado. Se isso tem levado pelo menos algumas CTs, ou alguns dos profissionais de CTs, a modificarem certas práticas e atualizarem seu discurso legitimador, a transformação, mesmo com tensões e ambivalências, se afigura muito mais superficial do que estrutural e mais propensa a conservar do que a diluir o sentido original dessas entidades enquanto espaços de ‘reconstrução do eu’ com base em princípios morais e religiosos tradicionais”.

Por fim, as autoras destacam que ainda que as comunidades terapêuticas possam ser o único recurso à disposição de famílias pobres para atendimento de pessoas com uso abusivo de drogas, não há evidências de que o “tratamento” oferecido por elas – baseado na abstinência total, no isolamento social, na imposição de fé e na “reforma moral” – seja eficaz, tampouco há meios de medir seus resultados, já que ele está longe de pautar-se por critérios técnicos de avaliação.

“Da mesma forma que devemos nos perguntar para que serve a ‘guerra às drogas’ no campo da segurança pública, sabendo-se que ela não reduz em nada a produção, a venda ou o consumo das substâncias proibidas, precisamos também indagar a que projeto está efetivamente atendendo essa opção pelas comunidades terapêuticas como foco central das políticas para usuários”, concluem. “Não se trata – é importante lembrar – de um questionamento das boas intenções que certamente animam operadores das CTs, muitos deles voluntários. Trata-se de questionar se o Estado deve investir recursos para promover ‘tratamentos’ altamente controvertidos, oferecidos por instituições privadas de origem confessional e de legalidade duvidosa, ou garantir a todos os cidadãos o acesso a serviços públicos de qualidade, diversificados e capilarizados, que respeitem direitos e necessidades individuais. A menos que se revogue a Constituição de 1988, e que o Brasil se transforme num Estado teocrático, a segunda opção é seguramente a mais adequada”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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