Dinossauros no Paraíso: raízes do ensino domiciliar

Artigo
2 fev 2019
Autor
Ilustração da Arca de Noé, por Gustave Doré
Movimento de homeschooling nos EUA foi incentivado pelo fundamentalismo bíblico

O esforço da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, para legalizar o ensino domiciliar no Brasil tem sido visto com desconfiança pelos setores da sociedade comprometidos com o Estado laico e a educação científica – e um olhar sobre a história e os estudos a respeito da prática mostra esses temores têm razão de ser.

As credenciais da ministra sugerem que seu interesse é mais religioso do que educacional.  A principal inspiração da iniciativa brasileira, o movimento de homeschooling iniciado nos Estados Unidos na década de 60, foi impulsionado primordialmente por  grupos protestantes e evangélicos insatisfeitos com a “secularização” das escolas e com a proibição do ensino do criacionismo em escolas públicas.

A principal voz a promover o homeschooling, nos primórdios do movimento americano, Rousas John Rushdoony, defendia a ideia de que a Constituição dos Estados Unidos proíbe a adoção de uma religião oficial para o país todo apenas porque os Estados, na época da independência dos EUA, já tinham suas próprias denominações cristãs oficiais, e que portanto a separação entre cristianismo e governo não faz sentido do ponto de vista histórico.

Mesmo nos dias de hoje, não só pastores evangélicos criacionistas estão entre os mais ardentes defensores do ensino domiciliar nos Estados Unidos, como pais que buscam recursos didáticos sobre Teoria da Evolução para educar os filhos em casa encontram dificuldade em localizar material adequado que tenha sido pensado e preparado para o homeschooling.

 Já as fontes criacionistas abundam, incluindo ilustrações bizarras de Adão e Eva cavalgando dinossauros ou versões atípicas da lenda de Beowulf, um épico clássico da língua inglesa, que mistura dinossauros aos monstros combatidos pelo herói mítico.

Transformações

Ao menos nos Estados Unidos, porém, esse perfil parece estar mudando: pesquisa sobre educação, conduzida pelo governo federal em 2016, aponta que cerca de 3% dos jovens americanos de 5 a 17 anos são educados em casa, e que a demografia desse grupo vem se desviando do padrão da família branca, conservadora e evangélica, mantido até pouco tempo atrás. Há um crescimento de participação de minorias étnicas e da população mais pobre.

Além disso, a maioria dos pais (80%) que optam por ensino domiciliar menciona temores sobre o ambiente escolar, segurança e drogas entre os “motivos importantes” por trás da opção, e 61% citam insatisfação com a qualidade das escolas públicas.

A proporção dos que mencionaram religião como uma das razões importantes caiu de 60% para 51%, em relação ao levantamento de 2012. E em 2013, artigo na revista Psychology Today chamava atenção para um movimento de famílias de esquerda rumo ao ensino domiciliar.

Efeitos

Mas, afinal, e o estudante? Existe algum benefício – ou malefício –  claro em ser educado em casa, fora da escola? Os dados sobre desempenho acadêmico e social de jovens que passam por homeschooling geralmente parecem brilhantes: notas acima da média em testes padronizados, maior envolvimento em atividades comunitárias e voluntárias, acesso mais fácil à universidade.

O problema é que esses dados sofrem de um forte viés de seleção: as pesquisas sobre sucesso acadêmico não cobrem toda a população, mas apenas quem se dispõe a respondê-las. Se os dados dos jovens matriculados em escolas públicas e particulares podem ser levantados por meio de solicitações oficiais, a coleta e tabulação de informações sobre os alunos de homeschooling depende da boa vontade dos pais.

Um levantamento publicado em 2007 apontava que “graças ao sucesso das organizações de lobby do ensino domiciliar, não há bases representativas de dados para estudar o sucesso acadêmico dos estudantes em homeschooling. Alguns Estados requerem que os pais que optam pelo ensino domiciliar provem que o filhos demonstrem progresso acadêmico”, mas os critérios de “prova” são variáveis e inconsistentes.

Saúde

Outra questão importante é a do abuso infantil. Esses casos, quando são denunciados, são em geral relatados por profissionais como professores ou enfermeiros, exatamente aqueles com quem a criança do ensino domiciliar tem menos oportunidade de contato.

Um estudo sobre tortura e maus tratos de crianças nos Estados Unidos constatou que 47% das vítimas haviam sido tiradas da escola pelos pais, e passaram a ser ensinadas em casa. O homeschooling acaba se tornando um pretexto conveniente para abusadores esconderem suas vítimas da sociedade. A regulamentação da educação domiciliar, se não prever algum tipo de supervisão externa, funciona como facilitadora de violência doméstica.

No que diz respeito à adesão a programas de vacinação, estudo publicado em 2018 não encontrou um excesso de rejeição às vacinas entre pais que optam pelo ensino domiciliar, mas determinou que estratégias de comunicação específicas são necessárias para esse público.

Outro estudo, este de 2012, indicava que crianças em esquema de homeschooling fazem menos visitas ao médico e têm menor chance de receber a vacina contra HPV.

O risco de “antivaxxers” usarem o homeschooling para escapar das regras de vacinação compulsória, de escolas públicas e privadas, também não pode ser ignorado. Organizações de ensino domiciliar do Estado da Califórnia (EUA) assistiram a um pico de interesse pelo método, após a aprovação de leis exigindo a vacinação como pré-requisito para matrícula escolar.

Dificuldade e risco

Também é preciso notar que dar a uma criança ou adolescente uma educação completa e eficaz em casa, sem o apoio de professores, colegas e da estrutura de uma escola, é muito difícil, consome tempo e esforço. Pais que trabalham fora enfrentam obstáculos formidáveis para implementar um esquema de homeschooling de qualidade.

Mesmo instituições investidas em promover a educação domiciliar, como o National Home Education Research Institute, reconhecem que a tarefa de ensinar um currículo estruturado  em casa, se levada a sério, pode ser estressante para os pais.

Uma questão de fundo importante, neste debate, é de que a criança não é uma peça de propriedade, submetida aos caprichos discricionários dos pais. É um ser humano que se desenvolve rumo à autonomia adulta. O processo ocorre sob supervisão dos pais, mas é, acima de tudo, um direito pessoal da criança.

Os dados, ainda que precários, sugerem que a educação domiciliar não representa, inevitavelmente, uma violação desse direito – mas, seja pelo enviesamento político-religioso ou pelas dificuldades inerentes, amplia bastante os riscos envolvidos.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciências

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