Ciência da desonestidade desafia o senso-comum

Artigo
20 jun 2019
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Execução de animal "criminoso"

Imagine-se encontrando na calçada uma carteira com cerca de R$ 400. Dentro há, também, uma chave, uma lista de supermercado e três cartões de visita idênticos, com nome e e-mail do dono da carteira. O que você faria? O que uma situação dessas pode nos dizer sobre a natureza do comportamento desonesto humano? 

Hoje, a revista Science publica (em https://science.sciencemag.org/content/early/2019/06/19/science.aau8712) um artigo que utilizou essa situação para mensurar o comportamento honesto de pessoas em bancos, espaços culturais, agências dos correios e repartições públicas. 

Essa estratégia, da carteira perdida, não é nova. São exemplos anteriores os hoje clássicos estudos da carta perdida, do psicólogo social Stanley Milgram, realizados na década de 1970. A novidade do estudo atual é sua abrangência. Foram ‘perdidas’ mais de 17.000 carteiras, em diferentes condições experimentais (carteiras com e sem dinheiro dentro, mas sempre com os outros objetos) em 355 cidades, de 40 países. 

Estudos envolvendo menos países já haviam sido publicados, com métodos semelhantes, mas, com tamanha abrangência, este é o primeiro trabalho de que se tem notícia. Os autores pediram para uma amostra de 299 membros da população em geral – e para um grupo de 279 economistas altamente reconhecidos – que tentasse prever os resultados do experimento. 

Tanto os não-especialistas como os economistas predisseram que um número muito maior de carteiras sem dinheiro seria devolvido, em comparação com as carteiras contendo dinheiro. Mas o resultado do estudo contradisse todas essas expectativas. Os autores relataram que a taxa de devolução das carteiras com dinheiro foi significativamente maior do que daquelas sem dinheiro, e isso ocorreu homogeneamente em 38 dos 40 países investigados. 

Mecanismos psicológicos diversos ajudam a entender os resultados aparentemente surpreendentes: por exemplo, uma tendência geral das pessoas em buscar ver a si mesmas como honestas, e uma preocupação altruísta com o bem-estar do dono da carteira.

Corrupção para além da intuição

Dentre os vários pontos que esse trabalho põe em evidência, um reforça a necessidade de aumentar a nitidez da lente científica de compreensão da desonestidade: o fracasso dos especialistas em prever a correta incidência do comportamento desonesto, e a semelhança das previsões entre especialistas e população em geral. 

Essa falha em prever o comportamento humano é recorrente em muitos estudos. Por exemplo, Milgram, nos seus famosos estudos sobre obediência à autoridade na década de 1960 – em que cidadãos comuns eram pressionados a aplicar choques elétricos cada vez mais fortes em colaboradores que, embora não recebessem nenhuma descarga elétrica real, simulavam grande dor –, realizou uma pesquisa com psiquiatras, solicitando que previssem se os participantes chegariam a aplicar choques com intensidade letal. 

Os especialistas predisseram que cerca de 2% chegariam a esse nível de intensidade. Na principal condição experimental, o estudo de Milgram demonstrou que 65% dos participantes administraram choques letais. A dificuldade da mente humana, mesmo de especialistas treinados, em prever comportamentos complexos é patente. 

Um grande número de fatores limita a capacidade humana para analisar, sem o apoio de ferramentas robustas, fenômenos complexos. Explico algumas dessas limitações, e como a humanidade desenvolveu formas de contorná-las, neste livro aqui

Estudos, como o publicado hoje, são as ferramentas necessárias para superá-las, com base no bom e efetivo método científico. O produto do pensamento humano mais precioso que a humanidade já inventou.

O assunto do comportamento desonesto e da corrupção está na nossa agenda diária. É um problema mundial, e o Brasil tem suas particularidades na busca por soluções eficazes. O assunto corrupção talvez seja o mais discutido entre os brasileiros e provocou, nos últimos anos, impacto significativo em inúmeros setores da sociedade. 

Como os dados sobre as previsões dos especialistas mostram, os gestores e elaboradores de políticas pública que desconsiderem os fatos da realidade empírica são ineficazes. Efetivas, apenas, são as ações pensadas com base nas evidências, e não aquelas restritas à visão pessoal dos formuladores de políticas. 

Isso é verdade para as diferentes ações do setor público, desde as políticas de saúde, até as que pretendem diminuir a corrupção e o comportamento desonesto em agentes públicos e privados.

Pensando nas particularidades de cada cultura, há aspectos que necessitam ser considerados para um entendimento consistente dos fatores empíricos relevantes, de forma a formular políticas efetivas. Culturas têm “síndromes culturais”, características de comportamento amplamente difundidas entre seus cidadãos e que exercem influência significativa, inclusive sobre a desonestidade. Uma de nossas síndromes, talvez a mais facilmente reconhecida, é o jeitinho. 

Ciência sobre o jeitinho

Temos empreendido esforços de investigação sobre os estruturantes psicológicos e comportamentais de “jeitinho” há vários anos, em diferentes trabalhos já publicados (acessíveis aquiaqui). Recentemente descrevemos a influencia que jeitinho exerce para a estruturação de preferencias individuais de como se relacionar com outras pessoas (acessível aqui). Essas preferencias são organizadas em duas dimensões, o Jeitinho Simpático e o Jeitinho Malandro. 

Essa última tem relação com comportamentos moralmente questionáveis, bem como aumenta a probabilidade de endosso de cenários de corrupção, como demonstramos nesse outro artigo, aqui. Indo além dos estudos de jeitinho temos buscado sistematizar as evidências da área, como o esforço de elaboração do Modelo Analítico da Corrupção, que engloba um grande número de fatores para a compreensão do comportamento corrupto e que pode ser acessado aqui.

Da mesma forma que temos preocupação em qualificar o debate e a tomada de decisões sobre saúde pública, baseando-a em evidências, também necessitamos qualificar as ações que visam minimizar o comportamento desonesto e corrupto, baseando-as em evidências. 

É necessário que os atores relevantes, nesse contexto, estudem essas evidências, de forma a planejar ações que extrapolem os limites impostos por suas cognições, mesmo que os atores elaboradores sejam considerados especialistas no tema. É frequente e recorrente que os especialistas sejam contraditos, como o artigo lançado nesta tarde na ScienceCivic honesty arround the Globe, nos faz lembrar no dia de hoje.

Ronaldo Pilati é professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília. Site: ronaldopilati.org Twitter: @PilatiRonaldo

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