Sem Chierice, mística da "fosfo" tende a declinar

Artigo
21 jul 2019

 

Gilberto Chierice depõe no Senado Federal

Morreu, na última sexta-feira, aos 75 anos, o professor de Química, aposentado, da Universidade de São Paulo Gilberto Orivaldo Chierice, que ficou conhecido pela “pílula do câncer”, que produziu e distribuiu, de modo irregular, por mais de duas décadas no campus de São Carlos da maior universidade latino-americana. Chierice foi vítima de um infarto e faleceu no Instituto de Moléstias Cardiovasculares de São José do Rio Preto (SP).

Com Chierice, morre também parte da mística que ainda envolve as cápsulas azuis e brancas de fosfoetanolamina, que o professor produzia artesanalmente em seu laboratório de química industrial, sem as mínimas condições de higiene para produção de qualquer coisa destinada a consumo animal ou humano. Em 2015, o local chegou a ser autuado pelo Conselho Regional de Farmácia, por más condições sanitárias e ausência de boas práticas de produção e controle de qualidade.

Com ajuda de seu assistente, Salvador Claro Neto, o químico chegou a produzir e distribuir 50 mil cápsulas mensais, recomendando que pacientes de câncer interrompessem químio e radioterapia e dizendo que a fosfo só funcionava em pessoas com sistema imunológico “íntegro”. 

Por vinte anos uma figura folclórica na cidade de São Carlos, ele ficou conhecido no País justamente quando, em 2014, a USP proibiu a fabricação das cápsulas e pacientes foram à Justiça exigir o acesso ao remédio que acreditavam ser milagroso. Assim, o folclore local virou manchete nacional, num momento político complicado, de descrença generalizada, que acabaria desembocando no impeachment de Dilma Rousseff.

As cápsulas jamais tinham sido submetidas a testes clínicos, mas em entrevistas a jornalistas não-especializados em ciência ou saúde, Chierice garantia que curavam câncer, todo e qualquer tipo de câncer. A fosfoetanolamina é vendida há décadas, mundo afora, como suplemento alimentar, mas o químico de São Carlos afirmava que seu processo particular de síntese assegurava tanto a pureza quanto o poder de cura. Análises realizadas pelo químico Luiz Carlos Dias, nos laboratórios da Universidade de Campinas, revelaram que o pó branco no interior das cápsulas de São Carlos continha quantidades muito baixas da substância, degradada pelo próprio processo de síntese desenvolvido por Chierice.

Familiares de pacientes de câncer criaram comunidades e grupos de pressão, em redes sociais, para obter a substância e trocar informações. A morte dos pacientes usuários da cápsula era racionalizada como efeito do início tardio do tratamento, ou do uso de uma suposta “falsa fosfo”, ou seja, uma que não tivesse recebido a bênção de Chierice. 

Oncologistas e pesquisadores sérios foram criticados agressivamente por seguidores do químico. Nem sequer Dráuzio Varella, provavelmente o médico mais popular do Brasl, escapou das acusações de estar “vendido aos grandes laboratórios”, a mais comum das teorias da conspiração a aparecer nas falsas curas de câncer. Em eventos voltados a seus seguidores, Chierice era considerado um “homem bom, com uma linda aura” e muita gente tentava tocá-lo, extasiada, como antigamente fiéis tentavam tocar as vestes de santos e profetas.

De ar bonachão, fala caipira e sorriso calmo, Chierice mudava radicalmente de atitude ao ser questionado por seus pares, como ocorreu em audiência do Congresso em que tomaram parte técnicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O debate, que é comum em ciência, não era seu forte: Chierice tratava questionamentos de caráter científico como ofensas pessoais, disparando uma barafunda de explicações que podiam impressionar o leigo, mas que revelam seu desconhecimento básico sobre biologia do câncer. 

Verdade seja dita, o químico de São Carlos se destacou em sua área, com pesquisa e desenvolvimento de resinas à base de mamona para confecção de próteses e produtos para impermeabilização, cujas patentes deram origem a suas empresas. Mas suas ideias sobre o câncer baseavam-se em especulações científicas da década de 30, que já tinham caducado nos anos 70.

A pressão popular pelo acesso à “fosfo”, como a substância acabou apelidada, foi tanta que o então Ministério da Ciência e Tecnologia destinou uma verba de R$ 20 milhões para que a tal pílula do câncer fosse testada dentro das normas válidas para avaliação de medicamentos. 

Nesse meio tempo, o Congresso aprovou uma lei, de autoria do pastor e deputado Marcos Feliciano (então no PSC) com apoio do atual presidente Jair Bolsonaro, que autorizava a comercialização do composto, passando por cima da Anvisa. A então presidente Dilma Rousseff, já sob a ameaça de impeachment, sancionou a lei, mas recursos à Justiça garantiram que a norma não saísse do papel.

A decisão de testar a fosfo, um processo demorado que pode levar anos, não acalmou a opinião pública e o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) decidiu testar a substância em pacientes num teste clínico acelerado, com fosfo produzida em laboratório do interior de São Paulo, de propriedade de um ex-aluno de Chierice, seguindo suas instruções e sob supervisão de seu braço direito, Claro Neto. 

Além disso, um grupo de apoiadores do químico, encabeçado pela administradora de empresas Bernadette Cioffi, a mais vocal das pessoas que se diziam curadas pela fosfo – no caso dela, um câncer de mama com metástase óssea – esteve presente durante todo processo, dentro do Icesp.

O teste foi um fiasco: a falta de qualquer resultado significativo fez com que o diretor do Icesp, Paulo Hoff, interrompesse a pesquisa. Na entrevista coletiva em que anunciou o fim dos testes, Bernardette, visivelmente decepcionada, já mostrava sinais de que, apesar de continuar tomando a substância, enfrentava novo câncer. Ela morreu em fevereiro, vítima de tumor no pâncreas.

O grupo formado em torno de Chierice rachou e dois de seus antigos colaboradores acabaram registrando uma patente de fosfoetanolamina nos Estados Unidos – onde existem mais de 150 patentes de processos de produção da substância. Hoje, um laboratório da Flórida a produz como suplemento alimentar, que é distribuído por via postal, no Brasil, a partir de uma empresa uruguaia. 

Lotes do produto foram testados, e as análises mostraram que não contêm fosfoetanolamina. A despeito disso, a fosfo da Flórida continua sendo vendida, atendendo à demanda de doentes de câncer iludidos e parentes desesperados. 

A tal “pílula da USP” faz parte agora da longa, e cada vez maior, lista de falsas curas do câncer. Daqui a algum tempo, vai ser suplantada no imaginário popular por algum novo chá milagroso, extrato amazônico mágico, pela volta do bicarbonato de sódio ou do suco de formigas mexicanas que causou furor nos 70. Porque as falsas curas têm o dom do eterno retorno, principalmente em tempos em que a ciência é posta de lado e se abraça o simplismo do pensamento mágico.

 

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros

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