Quando a superstição veste jaleco

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5 ago 2020
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Bob Nygaard é um detetive particular baseado na Flórida (EUA) especializado em reunir evidências contra “feiticeiros” e “paranormais” que extorquem dinheiro de vítimas afirmando que as pessoas são alvo de “maldições” que precisam ser removidas — processo sem garantias de sucesso, que requer várias etapas, onde cada etapa custa um bom dinheiro.

Às vezes, quando a maldição já parece estar no fim, as “forças do mal” reagem, e medidas de emergência (que custam ainda mais dinheiro) se fazem necessárias, e assim por diante. Os pagamentos tornam-se rotineiros, o senso de urgência cresce, a vítima perde a noção de quanto já gastou e de quanto ainda tem para oferecer. Quando o dinheiro pessoal ou da família acaba, endivida-se.

Muitas das vítimas que buscam a ajuda de Nygaard têm problemas reais — mortes na família, fracasso nos negócios, o fim de um relacionamento — que o “feiticeiro” atribui a um sortilégio. Uma cliente recente foi uma estudante de Medicina brasileira que perdeu quase meio milhão de dólares depois que um “paranormal” diagnosticou uma “maldição familiar” como causa da morte da mãe da jovem.

Numa entrevista publicada no início do ano, o detetive descreve o processo:

Há um conjunto de passos na fraude, explica Nygaard. Primeiro, o vidente precisa achar a vítima certa, alguém que é vulnerável, enfrentando dificuldades, em busca de um fiapo de esperança. As pessoas não notam que há um processo de doutrinação, diz ele. Começa-se fazendo a vítima pagar uma pequena quantia, abaixo de US$ 100, por uma leitura inicial. Ninguém vai anunciar a maldição logo aí; diz-se apenas que algo está errado, porque todo mundo quer saber o que é, por que coisas ruins acontecem. Logo, estão pagando US$ 900 pelos cristais e velas que são necessários para descobrir o problema.

Gostaria de sugerir ao município catarinense de Itajaí que contrate os serviços de Bob Nygaard.

 

Homeopatia, HCQ, ozônio…

Paralelo forçado? Vejamos: Itajaí é uma comunidade vulnerável, enfrentando problemas reais (assim como boa parte do estado de Santa Catarina, tem a epidemia de COVID-19 fora de controle). Passou por um processo de "doutrinação", quando recebeu (e acatou) ofertas de soluções mágicas de custo relativamente baixo, “velas e cristais” — no caso, cânfora homeopática, hidroxicloroquina (HCQ) — mas logo escalou para investimentos de monta (mais de R$ 4 milhões em ivermectina), gastos que se acumulam sem fim em vista, como mostra o recente anúncio da adoção da ozonioterapia.

Alguém talvez estranhe a equivalência proposta entre cristais, velas, de um lado, e homeopatia, HCQ, de outro. Mas o estranhamento, se houver, é mero fruto de condicionamento social. A relação entre cristais e vidência, velas e morte na família, é exatamente a mesma que há entre homeopatia e saúde, ou HCQ e ação contra COVID-19. Por quê? Vejamos.

O que caracteriza a superstição e o pensamento mágico é o pressuposto de elos de causa e efeito sem base racional ou, em versões mais sofisticadas, a ilação de que relações simbólicas — por exemplo, entre uma pena de águia e o voo — refletem-se em relações materiais concretas (se eu puser uma pena de águia no chapéu, sairei voando).

Homeopatia é um caso clássico de superstição por simbolismo: o princípio “ativo” do preparado, ausente, pois ultradiluído, é escolhido porque, de algum modo, simboliza a doença a tratar (daí o lema “cura pelos semelhantes”). Isso fica bem claro em casos extremos como o do remédio feito com fragmentos do Muro de Berlim (para “angústia de separação”), mas permeia toda a prática.

Mas, e quanto à HCQ? Ela não é “científica”? Além da já bem estabelecida ausência de base racional para seu uso na pandemia, há a dimensão simbólica que não deve ser subestimada — a pílula, ou comprimido, é, afinal, um potente símbolo cultural de saúde e cura.

 

Aparências e essências

Enfim, não é porque o feiticeiro usa jaleco branco e os feitiços vêm em caixinhas com bula (ou sob a forma de máquinas que se ligam na tomada) que certas ações são menos irracionais ou supersticiosas do que outras. Para retomar um argumento que remonta à Grécia Antiga, é preciso enxergar as essências por trás das aparências.

Resumindo, uma ação é fruto de pensamento mágico, ou supersticioso, se não há base racional para a expectativa de que venha a produzir o efeito desejado, e especialmente se a relação entre a atitude e o efeito é meramente simbólica. Essas definições cobrem os usos de HCQ, azitromicina e ivermectina contra COVID-19, e o de homeopatia e ozonioterpia contra qualquer tipo de problema de saúde.

A ozonioterapia é um exemplo pronto e acabado de pensamento supersticioso em roupagem tecnológica: como o ozônio é um gás extremamente reativo, que destrói quimicamente microrganismos livres na água e no ar, “deduz-se” que fará o mesmo no corpo humano, abstraindo o fato de que células humanas também são vulneráveis ao ataque químico do gás e, no caso da COVID-19, de que o vírus está nas vias aéreas e nas mucosas, não no reto.

No fim, é o mesmo tipo raciocínio que levou Donald Trump a sugerir que as pessoas injetassem desinfetante no corpo — é, em essência, tentar voar com uma pena de águia no chapéu, porque, afinal, águias têm penas, e voam.

Do mesmo modo que nem toda pessoa que se diz vidente é uma predadora venal como as perseguidas por Bob Nygaard, nem todo promotor de superstições médicas é um charlatão de opereta. Mas são exatamente os sinceros — e a sociedade que lhes estende o benefício da dúvida — que legitimam os aproveitadores.

 

Parando de procurar

Uma das primeiras grandes dúvidas filosóficas que me assaltou na infância foi a seguinte: por que as coisas que perdemos, quando as encontramos, sempre estão no último lugar em que olhamos? A solução, óbvia depois de quarenta anos de profunda reflexão, é: porque quando encontramos o que foi perdido, paramos de procurar. O lugar certo torna-se o último, por definição.

Algo semelhante ocorre com tentativas de cura e problemas de saúde: quando saramos ou nos sentimos melhor, paramos de tentar soluções e tratamentos. O problema é que, diferentemente da relação entre lugares certos e objetos perdidos, a entre remédios e resultados está longe de ser tão clara e direta.

Imagine uma pessoa que tenha um resfriado comum, desses que somem sozinhos em uma semana: se ela tentar um remédio diferente por dia — vitamina C, canja de galinha, chá de camomila, etc. — o remédio que parecerá o “certo” será o do sétimo dia, não importa qual. É por isso que a HCQ ou a ivermectina “precoces” aparentam funcionar contra o SARS-CoV-2: em mais de 90% dos casos, a COVID-19 se resolve sozinha, como o resfriado comum.

Uma porta giratória de tratamentos baseados em superstição, como a adotada em Itajaí, multiplica problemas. O mais evidente é o gasto público desmedido, inútil e desnecessário.

Outro é a verdadeira reação em cadeia de falsas associações de causa e efeito: cada habitante da cidade que não pegar COVID-19, ou pegar e tiver sintomas leves, ou pegar, tiver sintomas graves e se recuperar, terá um “depoimento pessoal e verdadeiro” a oferecer a favor de alguma coisa — seja antimaláricos, vermífugos, homeopatia e, agora, ozonioterapia. O dano que essa cacofonia, convertida em folclore, tem potencial de causar é assustador.

Nygaard diz que é difícil convencer a polícia a iniciar investigações contra supostos paranormais. “As autoridades parecem imaginar que, se você é tolo a ponto de dar dinheiro para um vidente, nada podem fazer para ajudá-lo”. Mantido o paralelo, nós brasileiros só podemos esperar que tamanho pessimismo não corresponda à realidade.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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