Vacinas para COVID-19 não causam aids

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25 out 2021
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Nenhuma das vacinas aprovadas para a prevenção da COVID-19 causa aids. Essa doença é provocada por um vírus específico, o HIV, que não tem nada a ver com os vetores ou vírus inativados utilizados em algumas das vacinas contra o SARS-CoV-2.  Nenhum dos efeitos das vacinas aprovadas para COVID-19 sobre o sistema imune humano tem qualquer coisa a ver com os mecanismos de como o HIV causa aids.

A conexão esdrúxula entre as vacinas de COVID-19 e a síndrome da imunodeficiência adquirida foi apresentada ao povo brasileiro por ninguém menos que o presidente da República, em sua “live” semanal de notícias falsas e conspirações malucas. Jair Bolsonaro, no entanto, não é um homem criativo: até suas mentiras são copiadas de algum lugar. Então, de onde ele tirou essa pérola? De um tabloide inglês, conhecido por espalhar notícias falsas, conforme apuração do G1: “A mensagem falsa diz: ‘Uma comparação de relatórios oficiais do governo sugere que os totalmente vacinados estão desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida muito mais rápido do que o previsto’. Ela foi colocada no site conspiracionista beforeitnews.com, que publica textos dizendo que as vacinas rastreiam os vacinados, e que milhões de pessoas morreram com as vacinas”.

O “alerta” do site inglês, que chegou a Bolsonaro, é do mesmo tipo daquelas mensagens que avisam que o monóxido de di-hidrogênio é um produto perigoso para a vida humana. Monóxido de di-hidrogênio é água (H2O) e ele realmente pode ser perigoso, por exemplo, em grandes quantidades, para quem não sabe nadar, ou em caso de tsunami. Trata-se de uma mentira construída a partir da distorção maliciosa de um núcleo fundamental que, a rigor, é até correto.

No caso da ligação espúria entre vacinas e aids, esse núcleo reside na preocupação, apontada por um grupo de pesquisadores na revista Lancet, que teve repercussão na revista Science, em 2020, quando as primeiras vacinas de vetor viral para COVID-19 utilizando o adenovírus 5 (Ad5) começaram a ser criadas (as únicas dessas vacinas a chegarem ao mercado foram a Sputnik V e a Cansino, não autorizadas para uso no Brasil). De onde vem a preocupação, e o que tem a ver com aids? Há pouco mais de uma década, uma vacina da farmacêutica Merck para HIV, que utilizava Ad5, teve um resultado inesperado na fase de testes clínicos.

Após muitos testes fracassados com vacinas para provocar uma forte resposta de anticorpos que poderiam barrar a infecção pelo HIV, a Merck resolveu investir em outra abordagem: uma vacina à base de adenovírus, buscando provocar uma resposta celular e uma diminuição da infecção e da carga viral de voluntários que fossem infectados pelo HIV. Esperava-se que a vacina conseguisse conter a multiplicação viral. Por isso, esses ensaios foram feitos em locais com alta incidência de HIV, recrutando populações com alto risco de contágio.

O estudo, conduzido em 2008, recebeu o nome de STEP trial, feito na América do Norte, América do Sul, Austrália e Caribe. Ao mesmo tempo, outro estudo, conhecido como Phambili, era feito na África do Sul.

Os resultados pré-clínicos ficaram razoáveis, mas não excelentes. Os testes em macacos mostravam uma certa proteção. Além disso, havia uma preocupação com imunidade prévia ao vetor. Muitas pessoas, principalmente na África subsaariana, já tinham sido infectadas pelo Ad5, que é afinal, um adenovírus comum de resfriado. Essa infecção prévia gera anticorpos ao Ad5, o que poderia comprometer a capacidade da vacina de gerar uma boa resposta imune para o HIV. Havia uma probabilidade grande de o corpo responder rapidamente ao vetor, eliminado toda a plataforma vacinal antes que ela tivesse uma chance de provocar a resposta para o que interessava realmente, as proteínas do HIV.

O que não se esperava, no entanto, era que alguns voluntários, mais precisamente homens que tinham imunidade prévia ao Ad5, não circuncisos, apresentassem maior chance de adquirir infecção por HIV, quando comparados ao grupo placebo.

Vamos entender isso. Depois da vacinação, no curso normal de suas vidas, alguns voluntários foram contaminados por HIV. Quando os cientistas foram ver em que grupo isso tinha acontecido com mais frequência, descobriram que a maior proporção estava em homens que combinavam três características: tinham anticorpos pré-existentes para Ad5, não eram circuncidados e haviam recebido a vacina.

O teste foi interrompido, e algumas hipóteses foram levantadas para explicar o ocorrido.

Uma foi que a construção vacinal com Ad5, em pessoas que já tinham anticorpos contra ele, aumentava a ativação de células TCD4 – as células do sistema imune que o HIV ataca normalmente. Assim, a presença de anticorpos pré-existentes anti-Ad5 + vacina + ausência de circuncisão + vírus HIV criava condições para que o HIV se multiplicasse com facilidade. Era como se nessas pessoas, receber um “reforço” de Ad5 criasse um ambiente mais favorável à multiplicação do HIV, com uma maior quantidade de “alvos” para ele, as células TCD4. O fato de o prepúcio ser rico em células com o receptor celular para o HIV, ou seja, a porta de entrada para o vírus, também deve ter contribuído para este resultado.

Sugeriu-se ainda que, se o vetor Ad5 tivesse sido melhor preparado, o problema teria sido evitado. Ou talvez três doses fossem doses demais. 

Existem ainda outras hipóteses. E também não se pode afastar a possibilidade de que tenha sido tudo resultado do acaso, de uma correlação espúria. Não foi possível, mesmo após vários estudos, isolar todas as possibilidades para explicar, sem sombra de dúvidas, qual foi a causa do efeito indesejado observado no STEP.

Com base nessa experiência prévia, e por precaução, os autores do artigo da Lancet pediram cautela no uso do Ad5 para vacinas de COVID-19, principalmente em áreas de alta incidência de HIV, como a África subsaariana, o que parece bastante razoável, visto que temos diversas alternativas eficientes, até mesmo com adenovírus. O Ad26, da Janssen, e o adenovírus de macaco da AstraZeneca, não são prevalentes em populações humanas como o Ad5. Estudo conduzido com a participação de pesquisadores brasileiros mostrou que a incidência de anticorpos contra adenovirus é mais alta em regiões fora dos EUA e da Europa, e o Ad5 é o mais prevalente.

Pode ser que o efeito esteja relacionado apenas à vacina de Ad5 para HIV. A empresa Cansino tem uma vacina para Ebola que também usa Ad5, e que foi testada em região de risco para HIV, em Serra Leoa, e não foi observado desfecho semelhante ao do STEP e Phambili.

O Brasil não usa nenhuma vacina com o vetor Ad5. As únicas vacinas para COVID-19 que trabalham com este vetor são da Cansino e do Instituto Gamaleya – a Sputnik V usa o Ad5 na segunda dose, a primeira dose é feita com Ad26. Nenhuma destas vacinas reportou até agora nada parecido com aumento de suscetibilidade à aids, mas a Namíbia anunciou que não vai usar a vacina Sputnik, justamente por conta desta preocupação apontada pelos autores da Lancet.

Para que fique bem claro: vacinas não têm como transmitir o HIV. O vírus da aids é um vírus sexualmente transmissível. Pode ser transmitido por contato sexual, e por sangue. O que aconteceu em 2008 foi algo pontual e dentro de uma situação específica: homens não circuncisos, em situação de alto risco de contágio, com anticorpos contra Ad5, dentro de um ensaio de vacina para HIV que usava um vetor Ad5.

Os pesquisadores que publicaram na Lancet chamando atenção para o problema estão certos em trazer essa questão para o debate. Mas extrapolar esse estudo para dizer que pessoas vacinadas correm risco de desenvolver aids é ainda mais forçado que alertar para risco de afogamento em copinho de água mineral.

 

Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto). Atualmente, é "visiting scholar" em Columbia University

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