Analisador quântico, colar "anti-5G": do inútil ao perigoso

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11 jan 2022
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Entre 1992 e 2020, um humorístico de sucesso, exibido na TV Globo, era o Casseta & Planeta, Urgente!, cujo quadro “Organizações Tabajara” satirizava a linguagem usada em programas de televenda, com seus apresentadores eufóricos prometendo cada vez mais descontos e vantagens para a compra de produtos mirabolantes, como facas de cozinha capazes de cortar canos de chumbo (e alguém usa chumbo na cozinha?). Os humoristas ofereciam diversos produtos (fictícios), supostamente “revolucionários”, que, no fim das contas, não serviam para nada. Alguns exemplos envolvem um assistente digital que discorda do usuário e uma tinta spray para aplicar sobre manchas de óleo na praia, de modo a deixá-las com a mesma tonalidade da areia e evitar ficar encarando os problemas ambientais.

Bom seria se os produtos inúteis ficassem restritos apenas a esquetes de humor, mas não é o caso. As pseudociências também estão recheadas de produtos alegóricos, que não são acompanhados por boas evidências científicas que indiquem que realmente entregam aquilo que prometem. No entanto, como são revestidos com aparência científica – seja por meio de nomes que usam termos científicos, fora de contexto, ou por supostos “doutores cientistas” que os anunciam –, conseguem convencer o público desavisado.

Aqui na Revista Questão de Ciência já foram explorados diversos itens, como colares de âmbar, água “plasmada” e as famosas propriedades dos cristais. Infelizmente, a lista, que já é grande, não para de crescer. Agora, vamos conhecer dois produtos que me foram apresentados recentemente: o analisador quântico e o colar de proteção contra as ondas de telecomunicações da tecnologia 5G.

 

Analisador quântico

A Física Quântica é tema recorrente nos artigos da RQC (como você pode encontrar aqui, aqui e aqui). Para os ainda não familiarizados, esta área da Física descreve de forma eficaz fenômenos que acontecem em sistemas de partículas, átomos e moléculas, cujas dimensões são ainda menores que os tais “tamanhos microscópicos” de estruturas biológicas bem conhecidas: células e bactérias, por exemplo.

O que vem acontecendo é que diversos conceitos de Física Quântica têm sido utilizados de modo distorcido e fora de contexto para tentar dar uma aparência de validade científica a práticas e produtos pseudocientíficos. Dentre esses conceitos, o que nos interessa aqui é o da “dualidade”: enquanto, até o início do século 20, as partículas elementares – que formam átomos e, por conseguinte, moléculas – eram descritas apenas como “pequenas bolinhas”, hoje sabemos que elas têm também um caráter ondulatório, com características como “comprimento de onda” e “frequência” associadas a elas.

No universo de fantasia da “saúde quântica”, o conceito de dualidade não só é incorretamente utilizado, como cria-se uma confusão de linguagem misturando o jargão da física a metáforas baseadas em termos musicais, como “harmonia”. Dessa forma, indivíduos saudáveis seriam aqueles cujas estruturas biológicas estão vibrando adequadamente, formando uma espécie de “sinfonia da saúde”.

Na verdadeira Física Quântica, no entanto, aprendemos que objetos maiores do que moléculas, como células, tecidos e órgãos humanos, têm caráter ondulatório praticamente nulo. A similaridade entre música e saúde é poética, não física: do mesmo modo que uma pessoa com “estrelas nos olhos” não está fundindo hidrogênio em seu crânio, uma pessoa com “vibração harmônica” não tem átomos afinados como uma orquestra. Para as práticas da vida diária, podemos afirmar com segurança que órgãos, tecidos e células não “vibram quanticamente” (é interessante notar que os terapeutas quânticos parecem “esquecer” esse detalhe). Caso você esteja curioso, já participei, a pedido do Instituto Questão de Ciência, de um congresso de Saúde Quântica. O relato está publicado aqui.

Assim, estamos prontos para entender o “analisador quântico”, cujo nome também pode aparecer como “analisador de biorressonância quântica” ou “analisador quântico de ressonância magnética” (QMRA, na sigla em inglês). Embora “ressonância magnética” apareça em uma das variantes dos nomes deste produto, quero deixar claro que esse aparelho nada tem a ver com o exame médico de imagem que carrega a mesma expressão – a “Ressonância Magnética Nuclear” (RMN).

A proposta do QMRA é bastante simples: consiste em pedir que o indivíduo sob análise segure um bastão metálico (ou, nesta outra montagem, coloque uma das mãos sobre uma placa) por um tempo suficientemente longo para que os sensores possam captar e interpretar as alegadas “vibrações quânticas” e “emissões de campos eletromagnéticos das células”. Como resultado, um software instalado no computador aponta vários problemas de saúde que devem ser posteriormente investigados.

De acordo com esta página de venda do produto, o aparelho elabora um diagnóstico completo sobre o estado do indivíduo, uma vez que é capaz de informar sobre problemas nos sistemas nervoso, cardiovascular, renal, digestório, respiratório, gerar relatório de alergias, vitaminas e minerais, e assim por diante. A promessa envolve um check-up em mais de 50 itens! Será que, finalmente, podemos abandonar nossos exames de rotina e trocá-los por uma manipulação periódica do analisador quântico?

Sugiro que não. Por vários motivos. O primeiro é que o próprio princípio de funcionamento do aparelho, captando as tais “vibrações quânticas”, é apenas fruto de utilização indevida dos termos da Física Quântica, pois, como vimos, sistemas biológicos não se comportam como ondas de maneira significativa.

O segundo é que o aparelho é tão descaradamente pseudocientífico que é capaz de diagnosticar os problemas fisiológicos de uma... toalha! Sim, colocando-se uma toalha úmida em contato com o sensor do produto, ele gera o relatório de saúde do pedaço de tecido, como você mesmo pode ver neste teste.

Esse processo nos mostra uma lição interessante sobre como o aparelho funciona, e não tem nada a ver com Física Quântica: o que ele faz é fornecer apenas respostas pré-programadas que parecem bastante acertadas. Mas como faz isso? A receita do aparente sucesso é simples: uma vez que é necessário inserir, previamente, os dados pessoais do analisado (sexo e idade), o software é capaz de indicar um resultado com as condições médicas mais prováveis de serem encontradas no respectivo grupo populacional. Além disso, como a lista de verificação envolve dezenas de itens, a chance de aparecerem problemas que realmente estejam acometendo o indivíduo é elevada – é o mesmo que ficar vendado e chutar diversas bolas na direção de onde sabemos que o gol está: alguma bola vai entrar.

Por fim, o terceiro motivo é que, em 2017, era possível ler na página oficial do produto uma nota de esclarecimento informando que os resultados provenientes do seu uso devem servir apenas “para referência”, não sendo úteis como meio eficaz de diagnóstico (conforme uma captura de tela disponível aqui). Ora, mesmo que esta informação já tenha sido retirada da página oficial atual, é bem possível afirmar que ela não deixou de valer.

 

Colar Anti-5G

Muita gente está esperando ansiosamente pela implantação da tecnologia 5G. Como vem sendo anunciado frequentemente, sua velocidade será tal que permitirá um nível ainda maior de conectividade: a famosa “internet das coisas”, em que eletrodomésticos, semáforos e automóveis, por exemplo, estarão interconectados com centrais de controle, como os celulares dos usuários, poderá encontrar terreno fértil para prosperar.

Para além do grupo dos ansiosos para utilizar o novo serviço, encontramos os mensageiros da ignorância, propagando informações falsas de que esses sinais eletromagnéticos fazem mal à saúde. Infelizmente, esse tipo de mensagem não é novo: casos similares envolvem alegações infundadas de que aparelhos e antenas de telecomunicações, além de fornos micro-ondas de cozinha, causam câncer. Recentemente, por consequência da alegação de que as antenas de 5G estavam transmitindo o vírus da COVID-19, algumas delas chegaram a ser incendiadas na Europa.

Surfando na onda da paranoia, surgem produtos “mágicos” que se anunciam como capazes de proteger o usuário das ondas supostamente danosas do 5G. Sim, “mágicos” mesmo, pois alega-se que esses acessórios – pulseiraspingentes e pendrives, por exemplo – geram uma espécie de escudo protetor contra as ondas de telecomunicação.

Alguém que realmente quisesse bloquear essas ondas precisaria de um ambiente ou de uma armadura especialmente preparados. Para obter proteção adequada, o tipo, forma e espessura do material utilizado como barreira fazem a diferença – hoje em dia, o sinal de celular às vezes funciona até mesmo dentro de um elevador ou no interior de túneis. Fato é que pequenos pedaços de borracha e alumínio pendurados no braço ou no pescoço nada podem fazer para evitar que sejamos expostos às ondas de telecomunicações ao nosso redor.

Mas, afinal, faz sentido preocupar-se em bloquear esses sinais? Abstraindo o benefício psicológico de escapar do WhatsApp da família, o fato é que, como já foi extensivamente discutido em artigos da RQC (como aqui, aqui e aqui), ondas eletromagnéticas vêm em “faixas” diferentes, a depender da sua frequência. As ondas de mais baixa frequência são as de telecomunicações, micro-ondas e infravermelho. As de mais alta são ultravioleta, raios-X e raios gama. No meio do caminho entre esses dois grandes grupos, encontramos a luz visível: ondas eletromagnéticas capazes de sensibilizar células na retina, permitindo que o cérebro forme uma imagem do mundo exterior.

As ondas do segundo grupo, de frequência superior às do espectro visível, são chamadas “ionizantes”, pois carregam energia suficiente para arrancar elétrons dos materiais que atingem, podendo formar íons e causar danos ao nosso DNA, o que eleva o risco de câncer quando a exposição supera os limites de segurança. Por outro lado, as ondas do primeiro grupo, abaixo do espectro visível, do qual fazem parte as ondas usadas na transmissão do 5G, são ditas “não ionizantes”, não tendo, portanto, a mesma capacidade.

Bem, é verdade que as ondas eletromagnéticas não ionizantes podem também causar danos biológicos – especialmente aquecimento e queimaduras –, mas, para isso, precisam de alta potência e, também, longa exposição. Como consequência desse fato, por precaução, não se deve subir em torres de transmissão com o sistema em operação. Mas a intensidade das ondas encontradas ao nosso redor é muito mais baixa, de modo que o próprio aquecimento do rosto, ou das mãos, em contato com o celular em uso supera facilmente qualquer eventual aquecimento que as ondas de sinal possam promover.

Além disso, aqui na RQC, o tema dos supostos danos causados por ondas de telecomunicações presentes no nosso cotidiano já foi explorado, mostrando, por exemplo, que não há associação entre casos de câncer e utilização dessa tecnologia. Como a própria Organização Mundial da Saúde nos lembra, as ondas associadas à tecnologia 5G não são essencialmente diferentes de outras usadas em sistemas antecessores, como o 3G e o 4G. Portanto, não há nada realmente novo que possa demandar preocupação sobre processos fisiológicos danosos desconhecidos.

Por fim, há uma “cereja do bolo”, cheia de contradição, nesses produtos pseudocientíficos: como resultado de uma análise recente, a Autoridade para Segurança Nuclear e Proteção contra Radiação da Holanda (ANVS, na sigla holandesa) emitiu nota informando que os materiais de que são feitos esses apetrechos – pelo menos 10 tipos diferentes deles – são, adivinhem só, radioativos! Para piorar, o tipo de radiação identificada está justamente no grupo das ionizantes.

As medidas realizadas pela ANVS indicaram que a taxa de emissão de radiação ionizante pelos produtos é baixa. Porém, como diz o ditado, “de grão em grão, a galinha enche o papo”: as autoridades alertaram que, com o uso contínuo desses amuletos – ao longo de um ano, o dia inteiro, por exemplo –, o valor limite de radiação ionizante recebido pelo usuário pode extrapolar a margem de segurança para o período, acarretando em incremento no risco de complicações como câncer de pele. Mesmo queimaduras e irritações podem se desenvolver precocemente, a depender do tipo da radiação ionizante que o aparelho emite, da taxa de emissão, da energia e da sensibilidade da pele da pessoa.

No fim das contas, estes dois produtos não são os únicos, e não serão os últimos, que tentam empurrar “soluções maravilhosas” que não passam de ilusão e pseudociência. Porém, para este caso de acessórios anti-5G, as coisas tomam uma proporção que ultrapassa os limites do bom senso, levando a uma ironia do destino clara e perigosa: os fabricantes se valem da ignorância das pessoas para vender um produto que, a pretexto de proteger contra uma radiação eletromagnética inofensiva, entrega materiais que emitem um tipo de radiação perigosa.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

 

P.S.

(Detalhes técnicos: quando afirmo que órgãos e células não “vibram quanticamente”, refiro-me, tecnicamente, ao fato de que os comprimentos de onda de De Broglie associados a esses sistemas são praticamente nulos, fazendo com que sistemas biológicos não se comportem de modo significativo como ondas. Isso não significa, no entanto, que seres vivos e células não emitam ondas eletromagnéticas de modo reconhecido pela ciência, como as emissões térmicas, ondas cerebrais e as interações entre moléculas e fótons, por exemplo. Porém, não entrei nessa discussão antes porque não é a esse tipo de emissão ou vibração que as aplicações charlatãs se referem: ao usarem as expressões “vibrações energéticas” ou “campos eletromagnéticos de seres vivos” geralmente querem vender uma ideia bem mais mística do que científica – algo muito parecido com usos indevidos do termo “energia” –, até porque, convenhamos, espectros térmicos e processos de interação da radiação com a matéria não geram substrato teórico adequado para permitir fazer as alegações por trás das terapias quânticas, baseadas em “ajustes frequenciais” para a saúde)

 

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