Do que os cientistas falam quando falam sobre sexo

Artigo
19 mai 2022
Autor
Adam and Eve

 

Na semana em que se lembra o Dia Internacional de Luta contra a LGBTfobia, observado na última terça-feira, 17 de maio, a prestigiada revista científica Science publica, na edição desta quinta-feira, artigo que debate a abordagem de questões relacionadas a sexo e gênero na ciência, e como isso impacta a elaboração de políticas públicas. Como o próprio crescimento da sigla usada para se referir a estas comunidades – hoje LGBTQIA+ na sua versão mais “resumida” - não para de demonstrar, a diversidade humana vai muito além de definições binárias de “masculino” e “feminino”.

Diversidade que diz respeito aos pontos de vista físico, anatômico, biológico e metabólico, além do psicológico e sócio-comportamental a que estas letras costumam ser associadas, e que deve ser levada em conta na hora que os cientistas propõem e conduzem seus estudos, defendem os autores do texto para discussão (policy forum) na Science. O artigo pede que até mesmo a relevância (ou não) de possíveis diferenças sexuais para a questão que a pesquisa se propõe a responder deve ser ponderada, evitando assim a má compreensão ou mau uso das definições e parâmetros sobre sexo adotados no desenho do estudo por agentes políticos: uma visão sobre sexo que faz sentido no contexto de uma pesquisa específica corre o risco de ser rotulada como "verdade científica" e apropriado na guerra cultural.

“Com frequência, ocorre um substancial desajuste entre como cientistas definem e operacionalizam diferenças sexuais em suas pesquisas e como legisladores e tomadores de decisão entendem estas definições e conceitos quando buscam estrategicamente impulsionar ou desafiar a governança legal (sobre questões de sexo e gênero)”, escrevem os autores. “Pesquisadores das ciências médicas e biológicas, que rotineiramente incorporam variáveis relacionadas ao sexo nas suas pesquisas, não podem eliminar o mau uso, superficial ou malicioso, dos estudos por legisladores e tomadores de decisão, mas a consciência sobre o cenário legal e político pode esclarecer as possíveis consequências, lá na frente, das escolhas que fazem para operacionalizar variáveis relacionadas ao sexo em seus estudos”.

Os autores do texto para discussão - Maayan Sudai, da Universidade de Haifa, Israel; Alexander Borsa, da Universidade de Colúmbia, EUA; Kelsey Ichikawa, da Universidade de Harvard, EUA; Heather Shattuck-Heidorn, da Universidade do Sul do Maine, EUA; Helen Zhao, também da Universidade de Colúmbia; e Sarah S. Richardson, também de Harvard – citam, então, vários exemplos deste problema, como quando o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHS, na sigla em inglês, e o equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil) propôs em 2019 uma emenda à regulamentação dos planos de saúde do país para permitir a discriminação com base na identidade de gênero ou orientação sexual.

“A regra proposta tinha como referências artigos de pesquisa biomédica sobre o cérebro, fígado e doenças cardiovasculares que apresentavam as diferenças entre os sexos como estritamente biológicas e binárias”, destacam. “Muitas estados propuseram e aprovaram leis que restringem a definição de sexo a critérios biológicos específicos como ‘anatomia’ e ‘genética’ no momento do nascimento”.

Segundo os autores do texto, o uso de definições biológicas sobre sexo e gênero na legislação pode parecer bem fundamentado, mas é potencialmente prejudicial e pode levar a consequências ilógicas, ao remover essas definições do contexto para que foram estipuladas e carregá-las para áreas dos direitos humanos, onde podem ser irrelevantes, além de “ignorar as evidências biocientíficas sobre a complexidade, mutabilidade, especificidade contextual e pluralidade dos sexos e gêneros”, sendo que “tanto na ciência quanto na lei, sexo é uma categoria contestada e complexa”.

Os autores lembram que embora “sexo” seja um dado quase onipresente em pesquisas nos campos da vida e saúde, em que os sujeitos dos experimentos, sejam pessoas, animais ou mesmo culturas de células, são logo rotulados como “machos” ou “fêmeas”, é cada vez maior a consciência, nas ciências biomédicas, que esta classificação binária é insuficiente para descrever as variações da biologia humana mesmo em domínios em que há muito tempo se presumem haver grandes diferenças entre os sexos, da neurociência à endocrinologia e ensaios pré-clínicos.

“Por exemplo, ao contrário da disseminada crença de que seres humanos têm cérebros ‘sexualizados’, trabalhos recentes na neurociência revelam que os cérebros humanos não são sexualmente binários. Mesmo em regiões que mostram pequenas diferenças entre fêmeas e machos, em conjunto, quando tomados individualmente cérebros não são ‘masculinos’ ou ‘femininos’, mas um mosaico que exibe características ‘femininas’ e ‘masculinas’”, citam.

Outra noção errônea é a da “diferença entre os sexos” na saúde e no desfecho de doenças, que muitas vezes pode ser creditada mais a outros fatores, como hormônios e massa corporal, e dependente de variáveis psicossociais relacionadas ao gênero num contexto biossocial. Assim, embora reconheçam que o conceito de “sexo” como uma entidade binária ainda seja útil para algumas áreas muito definidas e estritas de pesquisa, como o estudo dos aparelhos reprodutivos, “em muitas áreas, a premissa de que o sexo permeia a maior parte dos aspectos da biologia humana e divide a Humanidade em dois tipos essenciais está sendo desafiada pela pesquisa científica”, apontam os autores na Science.

Apesar disso, o direito americano – e de certa forma o arcabouço legal de praticamente qualquer país ocidental – insiste em classificar as pessoas pelo sexo em apenas duas categorias bem distintas, masculino ou feminino, e tendo como referência critérios biológicos estritos. Tal rigor exigiu, por exemplo, que a Suprema Corte dos EUA julgasse e decidisse recentemente que a proteção contra a discriminação “com base no sexo” constante da lei de direitos civis do país inclui orientação sexual e status transgênero, contam no texto.

 

Três abordagens

Os autores explicam então que isso se dá porque o sexo pode ser abordado de três formas do ponto de vista jurídico. A primeira, que nomeiam “essencialista”, é a que vemos mais comumente e presume que o sexo é estritamente binário e uma característica fundamental da pessoa definida pela ciência biológica. Este conceito essencialista do sexo muitas vezes está por trás de iniciativas legais anti-LGBTQIA+, como as que querem determinar quem pode usar qual banheiro, participar de qual campeonato ou justificam a segregação em espaços como prisões, vestiários etc.

Abordagens essencialistas binárias do sexo muitas vezes se baseiam em “alegações biológicas selecionadas sobre sexo para invocar a autoridade da ciência”, ressaltam. “Por exemplo, uma lei de 2021 aprovada (no estado de) West Virginia determina a classificação em competições esportivas segundo o ‘sexo biológico’, definido como ‘a forma física como macho ou fêmea baseada somente na biologia reprodutiva e genética do indivíduo quando de seu nascimento’”.

Em oposição ao essencialismo está o que os autores chamam de uma abordagem “abolicionista” do sexo no direito, que considera sua classificação como danosa e defende sua eliminação na consideração de políticas públicas. Eles citam como exemplos desta posição esforços para remoção de referências ao sexo em documentos como carteiras de motorista e certidões de nascimento, converter banheiros para gênero neutro ou multigêneros ou apoio para competições esportivas mistas. Outras iniciativas abolicionistas também buscam substituir classificações por sexo por critérios mais relevantes, como licenças maternais por licenças parentais, a serem concedidas “ao cuidador familiar principal”, à “pessoa grávida” ou lactante.

“Tais iniciativas são frequentemente apoiadas por especialistas médicos e associações que atentam para a complexidade do gênero e do sexo, ou pela falta de necessidade de mencionar o sexo em contextos específicos”, lembram. “Em junho de 2021, a Associação Médica Americana decidiu ‘defender a remoção do sexo como uma designação legal na parte pública da certidão de nascimento’, argumentando que esta remoção não vai prejudicar a coleta de estatísticas vitais necessárias para fins de saúde pública e ajudará a proteger a privacidade e prevenir a discriminação contra pessoas intersexo, trans e não binárias”.

Por fim, há a abordagem que os autores batizaram de “pluralista” e um caminho intermediário entre as outras duas visões, pelo qual diferentes contextos requerem diferentes definições para “sexo”. O pluralismo difere do essencialismo por entender que o sexo não é binário nem uma característica fundamental dos indivíduos, e tampouco é abolicionista, pois reconhece a necessidade de classificações e determinações quanto ao sexo em algumas situações e contextos, principalmente quando envolvem direitos e proteção de populações vulneráveis.

“Definições e conformações de categorias relacionadas ao sexo variam de acordo com as necessidades pragmáticas da política ou contexto social”, resumem.

Desta forma, uma abordagem pluralista também se mostra mais adaptável, com a legislação mudando ao longo do tempo para aceitar mais categorias e incluir aqueles que não se encaixam no sistema binário, e expandindo a definição de machos e fêmeas para além da biologia essencialista. Por isso, os autores apostam que uma abordagem pluralista deverá receber o apoio de muitos que hoje defendem a visão abolicionista.

“Uma abordagem pluralista pode apoiar classificações por sexo de algumas categorias protegidas, como em estatutos antidiscriminação desenhados para proteger populações vulneráveis nos ambientes de trabalho”, apontam.

 

Alternativas

Diante disso, os autores alertam os cientistas que as definições e critérios que usam para estudar variáveis relacionadas ao sexo muitas vezes são adotados para justificar políticas mais amplas, com o “sexo” tendo diferentes significados em diferentes situações e momentos. Por isso, os pesquisadores devem deixar claros os contextos e limites de uso da classificação de sexo ou gênero que adotam. Quando possível, os autores também aconselham reduzir o que chamam de uso desnecessário de categorias relacionadas ao sexo no desenho, condução e interpretação de estudos científicos na área biomédica.

“Muitas vezes as categorias de sexo ficam nos dados meramente porque eles já vêm separados por sexo, mesmo que sexo não seja uma variável central ou relevante para análise”, apontam. “Frequentemente, os pesquisadores usam o sexo como um indicador de outras variáveis, seja porque as outras variáveis são mais difíceis de coletar ou porque sexo já está disponível nos dados como uma categoria de análise”.

No lugar disso, os autores sugerem usar outras variáveis que possam ter uma relação mecanicista mais próxima com a condição em estudo, como níveis de hormônios, peso, anatomia ou gravidez. Eles também aconselham incorporar na discussão, e sempre que possível na coleta de dados, variáveis relacionadas a gênero e fatores sociais nas suas pesquisas sobre diferenças entre os sexos.

“Quando se estudam as disparidades entre os sexos em uma doença, por exemplo, é prudente levar em consideração comportamentos de gênero e variáveis estruturais que contribuam para um maior risco de exposição à doença, acesso a serviços de saúde e probabilidade de relatar certos sintomas”, consideram. “Entender sexo e gênero sob uma estrutura biossocial pode ajudar a evitar interpretações essencialistas indesejadas que apresentam sexo e gênero como conceitos binários simples, imutáveis e determinados pela biologia. Quando o uso científico de conceitos biológicos de sexo não é claro, preciso e rigoroso, aumenta-se o risco de ativistas compreenderem ou representarem mal a pesquisa científica sobre o sexo biológico. Práticas pensadas, éticas e responsáveis sobre como as diferenças sexuais são discutidas, contextualizadas e aplicadas em estudos científicos são vitais quando a ciência pode ser usada para justificar políticas danosas e discriminatórias”, concluem.

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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