Por enquanto, fusão nuclear é só hype

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15 dez 2022
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sol alquimista

 

Arquivo X é um seriado dos anos 1990 cujos capítulos tratavam de temas sobrenaturais envolvendo extraterrestes, conspirações e assassinos mutantes. Um dos episódios trata de um mutante chamado Eugene Victor Tooms, que acorda de uma hibernação a cada 30 anos para comer o fígado de cinco pessoas.

Em 1989 a imprensa noticiou que cientistas diziam ter conseguido fundir núcleos atômicos à temperatura ambiente – façanha que recebeu o nome de “fusão a frio” – em um experimento relativamente simples. Apesar de todo o alarde, ninguém conseguiu reproduzir os resultados, e a alegação caiu em descrédito. Pouco mais de 30 anos depois, o assunto da fusão nuclear sai da hibernação e retorna aos noticiários sob um outro contexto, mas mantendo uma semelhança incômoda em relação a 1989: antes da descoberta ser submetida à avaliação crítica da comunidade científica, os autores correm à imprensa para alardear a suposta conquista.

Diferentemente de 1989, porém, quando havia um artigo publicado sobre a descoberta, até o momento da redação deste texto não apareceu nenhuma publicação científica com dados e detalhes técnicos da descoberta. Até agora, todas as notícias derivam de um anúncio para a imprensa da assessoria do laboratório que reivindica o feito: primeira vez na história em que se obtém um “saldo positivo” na geração de energia por fusão nuclear em um laboratório – em outras palavras, saiu mais energia do que entrou. Vamos devagar, porém.

Núcleos de átomos têm carga positiva, e cargas de mesmo sinal se repelem. Para ocorrer a fusão, os núcleos devem estar bem próximos, mas para isso acontecer eles precisam "vencer" a força de repulsão, que pode se tornar extremamente elevada a curtas distâncias. Por este motivo, o processo de fundir núcleos atômicos tem um custo energético bastante alto. Fusões nucleares acontecem naturalmente no interior de estrelas por causa de um ambiente de intensa força gravitacional e altíssimas temperaturas.

O anúncio da fusão a frio trazia, portanto, uma descoberta surpreendente, exatamente por acontecer à temperatura ambiente. O artigo original, de autoria de M. Fleischmann e S. Pons, foi publicado aqui. A publicação de uma descoberta em uma boa revista especializada é feita somente após uma avaliação por cientistas que trabalham na área que contempla o resultado proposto. É a chamada revisão por pares. Isso traz uma certa segurança a respeito da conclusão da pesquisa, mas o reconhecimento e a formação de um consenso da comunidade científica se dão somente após reprodução do experimento por grupos independentes.

No caso da fusão a frio, o próprio artigo já apresentava diversos problemas que indicavam que a pesquisa nem deveria ter sido publicada. Apenas alguns meses depois da publicação, a comunidade científica verificou que o alarde da fusão a frio não fazia nenhum sentido. Porém, diversos veículos de comunicação já haviam noticiado a descoberta como a solução para o problema de energia no mundo – a Folha de S.Paulo, na edição de 25 de março de 1989, dava a manchete na capa do jornal: “Cientistas obtêm energia com fusão nuclear de baixo custo”.

Nos últimos dias, o assunto da fusão nuclear retornou à baila na imprensa. Embora haja plausibilidade teórica no anúncio da descoberta – não existe uma violação de nenhuma lei consolidada da física, como era o caso da fusão a frio – algumas matérias contêm um hype desnecessário: “Experimento é um grande passo em uma busca para liberar uma fonte infinita de energia limpa” (CNN Brasil); “Fusão nuclear: como cientistas alcançaram 'Santo Graal' da energia limpa” (BBC News Brasil). A Folha de S.Paulo foi mais cautelosa na manchete “Sucesso de fusão nuclear inspira otimismo, mas também requer cautela” e o G1 acertou na escolha das fontes, que deram um tom realista ao texto.

O resultado divulgado agora indica que, pela primeira vez, um experimento de fusão nuclear retornou saldo energético positivo. O experimento foi realizado no Laboratório Nacional Lawrence Livermore e utilizou lasers para fundir núcleos de hidrogênio. A fusão de núcleos de hidrogênio resulta na criação do elemento hélio e na liberação de energia – toda esta informação, porém, não apareceu em nenhum artigo avaliado por pares e está baseado somente em um anúncio do Departamento de Energia dos Estados Unidos.

É preciso ter cautela ao se anunciar uma “descoberta científica” – às vezes vale a pena segurar um pouco a empolgação e aguardar alguns meses até que a comunidade científica se manifeste de maneira mais ampla, ou então que se apresentem todas as dúvidas que envolvem o experimento, evitando-se o hype. É importante dizer que o resultado, se confirmado, é um grande achado da pesquisa básica e pode representar um avanço inicial de poucos milímetros numa caminhada de milhares de quilômetros, até o uso prático da tecnologia para a geração de energia.

Há ainda outras questões a considerar na descoberta: a reprodução do resultado é algo fundamental para ver se o dado obtido não é apenas fruto de uma flutuação estatística; do ponto de vista prático, a contabilização do gasto energético deve levar em conta também a energia necessária para operar os lasers, como pontua o pesquisador Vinícius Njaim Duarte, do Princeton Plasma Physics Laboratory, na matéria do G1: “O laser precisou de uma energia na tomada de 300 megajoules para operar, para que conseguisse produzir a radiação e essa radiação chegasse na cápsula” (a energia produzida pela fusão foi de 3,15 megajoules).

Pela relevância do achado, causa estranhamento que junto ao press release não tenha saído um artigo publicado em uma revista de boa qualidade. Para efeito de comparação, o anúncio para a imprensa da detecção das ondas gravitacionais (assunto que deu o prêmio Nobel de 2017 a Rainer Weiss, Barry C. Barish e Kip Thorn, da colaboração LIGO/VIRGO), feito em 11 de fevereiro de 2016, veio acompanhado de um artigo técnico, publicado na mesma data na prestigiosa revista Physical Review Letters.

Parafraseando Carl Sagan, alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Dizer à imprensa que se fez algo é bem diferente de convencer os demais especialistas no assunto e publicar um artigo. Do lado dos jornalistas, é sempre melhor evitar um sensacionalismo que traz expectativas que, muitas vezes, não se concretizam. Da parte do laboratório, talvez tenha havido apenas um descompasso entre o anúncio do achado e a publicação do artigo. Porém, enquanto este não estiver publicado em uma boa revista, para todos os efeitos práticos, e do ponto de vista da comunidade científica, o resultado não existe. A ver.

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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