A física do "bom demais para ser verdade"

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10 nov 2023
Autor
super science

Usinas de fusão nuclear e materiais supercondutores a temperatura ambiente. Dois avanços científico-tecnológicos capazes de revolucionar a Humanidade, com aplicações como a geração de energia abundante, limpa e barata, computadores ultrarrápidos e trens supervelozes. Tanto que, nas últimas décadas, não faltaram anúncios de que haviam sido alcançados, apenas para depois, infelizmente, se mostrarem bons demais para ser verdade, como no fiasco da "fusão a frio" dos anos 1980.

E é o que estamos vendo mais uma vez nas duas áreas. Divulgada com estardalhaço em dezembro de 2022, a notícia de que cientistas do Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL), nos EUA, haviam conseguido produzir mais energia do que a usada para dar início a um experimento de fusão nuclear segue, quase um ano depois, sem um artigo científico formal, revisado por pares, descrevendo os resultados.

Isso não impediu, porém, que os cientistas redobrassem a aposta. Em setembro passado, um dos responsáveis pelo experimento anunciou um segundo sucesso na chamada "ignição" das reações de fusão nuclear no laboratório. A informação novamente ganhou as manchetes da mídia generalista, enquanto os detalhes do experimento permanecem limitados a relatos em conferências, como a recém-realizada 65ª Reunião Anual da Divisão de Física de Plasma da Sociedade Americana de Física.

Mas, se no caso dos experimentos de fusão no Lawrence Livermore, o "pecado" talvez seja apenas uma inversão da ordem ideal da divulgação científica, com a notícia vindo antes do artigo numa busca por um hype desnecessário - e talvez prematuro -, no da supercondutividade o cenário é muito pior, com suspeitas de fraude envolvendo os físicos Ranga Dias, da Universidade de Rochester, Nova York, e Ashkan Salamat, da Universidade de Nevada em Las Vegas (UNLV). Na última terça-feira, 7 de novembro, a revista Nature anunciou a retratação de um artigo no qual um grupo de pesquisadores, liderado pela dupla, relatava a descoberta de um material supercondutor capaz de operar em temperatura ambiente e sob pressão relativamente baixa.

Este é o terceiro artigo capitaneado pelos dois retratado em pouco mais de um ano. Em outubro de 2022, a mesma Nature já havia removido da literatura científica outro estudo em que eles relatavam supercondutividade em temperatura ambiente em um material do mesmo tipo, ambos ricos em hidrogênio e conhecidos como hidretos, originalmente publicado em 2020. Já em agosto deste ano foi a vez do também prestigioso periódico Physical Review Letters anunciar a retratação de artigo em que descreviam propriedades isolantes de um sulfeto de manganês (MnS2).

 

Coautores desconfiados

A mais recente retratação envolvendo Dias e Salamat foi pedida pelos próprios coautores do artigo. No texto informando a decisão na Nature, oito deles - incluindo Salamat - dizem que o artigo publicado "não reflete precisamente a procedência do material estudado, as medidas experimentais feitas e os protocolos de processamento de dados adotados". Segundo eles, esses fatores "comprometem a integridade" do trabalho.

Além disso, destaca a Nature, outros pesquisadores não envolvidos no estudo levantaram dúvidas a respeito da confiabilidade dos dados sobre resistência elétrica apresentados no artigo, com uma investigação subsequente e nova revisão por pares concluindo que tais preocupações são críveis, substanciais e ainda não resolvidas pelos autores do trabalho.

Esta também não foi a única "descoberta" recente envolvendo supercondutividade que se mostrou boa demais para ser verdade. Em julho, um grupo de pesquisadores ligado a uma empresa na Coreia do Sul publicara dois artigos no repositório de preprints ArXiv em que descreviam o desenvolvimento e experimentos com um material cristalino misturando cobre, chumbo, fósforo e oxigênio que supostamente exibia comportamento supercondutor - como baixíssima resistência à passagem de correntes elétricas e levitação - a temperaturas altas e pressão relativamente baixa, de até 127º C e uma atmosfera, respectivamente.

Apelidado LK-99, o material logo recebeu atenção da comunidade científica mundial, que partiu para tentar reproduzi-lo e conduzir experimentos com ele. Os estudos, no entanto, falharam em obter supercondutividade, e ao fim se concluiu que impurezas no material original - especialmente sulfeto de cobre - eram responsáveis pela queda na resistividade e da levitação magnética parcial observadas no experimento original.

 

Preocupação com investimentos

Em entrevistas para a Nature, alguns cientistas expressaram preocupação de que os dois casos - e principalmente o relacionado a Dias - possam prejudicar os investimentos no campo de supercondutores, bem como a atratividade da área para jovens pesquisadores. Físico da Universidade do Estado de Iowa e do Laboratório Nacional Ames, Paul Canfield diz que a colaboração Dias-Salamat espalhou uma "atmosfera suja" sobre o campo que estaria "afugentando jovens pesquisadores e agências de fomento". Já o físico Mikhail Eremets, líder de um grupo do Instituto Max Planck de Química em Mainz, Alemanha, que relatou a descoberta de um hidreto supercondutor a -70º C em 2015, afirma "ter alguns colegas que simplesmente temem que este caso de Dias lance uma sombra de dúvida na credibilidade de nosso campo em geral".

Outros, no entanto, não estão tão pessimistas. Afinal, o potencial revolucionário de materiais supercondutores a condições próximas do ambiente, isto é, temperatura e pressão "normais", não deve levar a fonte a secar. "Na verdade, pode até ficar mais fácil conseguir recursos para pesquisas em supercondutividade, dado que algumas autoridades governamentais podem ficar influenciadas pela expectativa de supercondutores a temperatura ambiente", considera Hai-Hu Wen, diretor do Centro para Física Supercondutora e Materiais da Universidade de Nanjing, China.

Ou, como conclui Peter Armitage, físico experimental da Universidade Johns Hopkins em Baltimore, EUA: "Pessoas sérias continuam a realizar um trabalho incrível e interessante (na área). Com certeza elas podem ficar desapontadas com este nonsense, mas isso não vai parar a ciência".

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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