Exemplos do século 19 para vida nas redes

Apocalipse Now
1 abr 2023
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foto vitoriana

 

Mais de um observador já chamou atenção para as semelhanças entre o mundo online do século 21 e a sociedade vitoriana do século 19. Ambos os períodos parecem marcados por uma preocupação artificial, obsessiva, quase doentia, com reputação – e pelos excessos decorrentes. Num regime onde toda falha é pública nada é, em princípio, perdoável, a hipocrisia deixa de ser um mero lubrificante de relações cordiais e se converte no principal combustível da sociedade.

A Era Vitoriana antecipou a nossa, por exemplo, na instituição do “cancelamento”. Um dos mais notáveis foi o do tenente-coronel Sir William Gordon-Cumming (1848-1930), expulso do Exército e barrado na alta sociedade por ter, supostamente, trapaceado num jogo de cartas. Em 1890, Gordon-Cumming foi flagrado mudando o valor apostado depois do fim de uma rodada de baccarat, mas antes da banca calcular os ganhos e perdas, em festa da qual também participava o Príncipe de Gales, herdeiro da Rainha Vitória.

Confrontado, firmou um “acordo de cavalheiros” – assinou um documento comprometendo-se a nunca mais jogar cartas, em troca da promessa de que o fato embaraçoso não seria divulgado pelas testemunhas. A indiscrição, no entanto, vazou, e Sir William processou os fofoqueiros por difamação. O julgamento foi notícia internacional, entre outros motivos porque, ao levar o caso para a Justiça civil, Gordon-Cumming cometia a “indelicadeza” de pôr Albert Edward, o Príncipe de Gales (e futuro rei Edward VII), na condição de testemunha.

O júri acabou absolvendo os réus acusados de difamação – o que, implicitamente, representava uma condenação de Sir William por trapaça. O efeito foi imediato, anunciado pelo mais respeitado jornal da época, o Times:

 

“Isto significa que Sir William Gordon-Cumming, publicamente condenado por trapacear nas cartas, deve deixar o Exército, deixar seus clubes e não mais considerar-se membro da sociedade (...) Ele está, de fato, condenado pelo veredito do júri à extinção social”.

 

“Extinção social”, eis aí uma bela expressão.

 

As Eras da Ouro

 

A era da web é também a Segunda Era de Ouro da Chantagem. No fim do ano passado, o FBI emitiu um alerta para um aumento expressivo no número de casos de extorsão contra jovens, envolvendo a ameaça de divulgação de fotos e vídeos comprometedores. Diz notícia sobre o assunto:

“Pelo menos 3 mil crianças, a maioria garotos adolescentes, foram vítimas de esquemas conectados a mais de uma dezena de suicídios neste ano [2022], uma escalada que as autoridades americanas nunca viram antes, afirmam autoridades do Departamento de Justiça. Muitos acreditam estar conversando online com garotos da mesma idade, acabam manipulados para enviar fotos explícitas e então são chantageados com ameaças de divulgação das imagens, informa o FBI”.

 

Embora não seja termo definido no Código Penal, “chantagem” é geralmente entendida como a extorsão de dinheiro, favores ou vantagens por meio da ameaça de divulgar fatos ou mentiras danosos à reputação da vítima. O reconhecimento desse tipo de crime como crime – isto é, um problema social, e não apenas uma transação desagradável entre indivíduos particulares – veio ao longo do século 19, quando a prática floresceu.

Em seu clássico estudo “Blackmail”, o sociólogo britânico Mike Hepworth anota que os registros de 1779 da prisão de Newgate, em Londres, descrevem a execução de um certo James Donally por tentar extorquir dinheiro do Honorável Charles Fielding, segundo filho do Conde de Denbigh, ameaçando-o com “a mais vil de todas as acusações” – no caso, a prática de atos homossexuais.

O triste fim de James Donally parece ter sido um evento raro para a época. Extorsão por meio do que chamamos hoje de chantagem não era uma ofensa reconhecida, e quando punida era tratada pela lei inglesa como outras formas de roubo sob ameaça – assalto à mão armada, por exemplo. O que ajuda a explicar a pena de morte.

A identificação da chantagem como um problema específico, separado da extorsão por meio de violência física, ainda levaria algumas décadas. Mas enfim, quase cem anos depois da execução de Donally, em 1874, do outro lado do Atlântico, The New York Times soava o alerta: “um sistema disseminado” de chantagem estaria operando em várias cidades norte-americanas. “Este mal tem crescido rapidamente ao longo dos anos, até que a prática de extorquir dinheiro de pessoas nervosas, por meio de ameaças, parece ter se tornado quase uma profissão reconhecida”.

A primeira Era de Ouro da Chantagem foi viabilizada por dois fatores: a modernização e o barateamento dos serviços de correio (o selo postal foi introduzido na Inglaterra em 1840), o que fez da correspondência uma forma rápida, simples e comum de comunicação; e a disseminação da imprensa. Cartas indiscretas serviam como evidência material e também como meio de enviar ameaças; e muitos jornais não hesitavam em fomentar escândalos para aumentar circulação (ou em pedir compensação para suprimir informações embaraçosas).

A Segunda Era de Ouro vem a reboque de versões mais eficazes e impiedosas das mesmas formas, modelos e estruturas, ainda que numa base tecnológica inimaginável há mais de 100 anos.

 

O mestre chantagista

Hepworth põe em dúvida a existência real da figura do “mestre chantagista” – um vilão que coleciona segredos e indiscrições de inúmeras pessoas e com isso extrai delas um fluxo de renda constante, como se fossem os juros de um empréstimo ou os dividendos de um investimento de longo prazo: não parece haver registro desse tipo de criminoso nas atas dos tribunais. Mas o sociólogo reconhece o paradoxo de que um mestre chantagista bem-sucedido provavelmente jamais chegaria a ser denunciado, quanto mais processado ou  julgado.

Na ficção, o mais famoso provavelmente é Charles Augustus Milverton, adversário de Sherlock Holmes numa aventura publicada em 1904 e que se passa, segundo a maioria dos críticos, em 1899. Mas Milverton é baseado num personagem real, Charles Augustus Howell (1840-1890), amigo e correspondente de importantes pintores e poetas de quem recebia cartas indiscretas e que mantinha – ou não, dependendo da fonte – sob constante chantagem.

Segundo um biógrafo do poeta Algernon Swinburne (1837-1909), cartas comprometedoras enviadas a Howell foram usadas para forçar Swinburne a abrir mão dos direitos autorais de um de seus trabalhos. Em carta escrita após a morte de Howell, o poeta manifesta a certeza de que o falecido encontra-se “naquele particular círculo do inferno” em que os condenados são cobertos com excremento. Na “Divina Comédia” de Dante, o rio de excremento é o lugar onde se punem os bajuladores.

A morte de Howell foi suspeita: em 1890, mesmo ano do escândalo do baccarat, foi encontrado sem sentidos numa sarjeta, do lado de fora de um bar, com a garganta cortada e uma moeda enfiada na boca – supostamente, “o salário do caluniador”. Não se sabe se já estava morto, ou apenas desacordado. Foi levado para um hospital, e a história oficial é de que morreu de tuberculose num leito hospitalar, laudo que (supõe-se, para o alívio de muitos) tornou desnecessário um inquérito policial.

Howell, uma personalidade sedutora que tinha facilidade em ganhar a confiança de pessoas influentes e se mostrava sempre disponível para eventuais trabalhos sujos, colava as cartas que recebia de pessoas famosas – pintores, escritores – em grandes álbuns de recortes, que depois penhorava.

Segundo o historiador Donald Thomas (“The Victorian Underworld”, publicado em 1998), isso era parte de um grande esquema de chantagem: penhorados os álbuns, Howell pedia aos correspondentes o dinheiro necessário para tirá-los do prego. Como muitas cartas continham detalhes íntimos ou incriminadores, a vítima era coagida a “ajudar”. Helen Rossetti Angeli, autora de uma biografia dedicada a limpar o nome de Howell, admite que os álbuns existiam e eram penhorados, mas rejeita a ideia de que houvesse extorsão.

Chantagista ou não, Howell estava longe de ser boa companhia: vinte anos antes de sua morte misteriosa, ele havia convencido o poeta Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) a exumar, de forma semiclandestina, o corpo da esposa para retirar do caixão um caderno manuscrito com poemas inéditos que Rossetti, num acesso de romantismo, havia sepultado junto com a amada.

A exumação, presidida por Howell em pessoa, ocorreu sete anos após o enterro, e o estado das páginas era esse mesmo que você está imaginando. O caderno estava “completamente encharcado e precisou ser saturado de desinfetantes”, Howell escreveu na época. Menos de um ano depois, era publicado o volume inédito “Poemas”, de D.G. Rossetti.

As aventuras de Charles Augustus Howell sugerem uma afinidade mais do que metafórica entre o chantagista e o ladrão de sepulturas. Hoje em dia, há quem mergulhe em arquivos de sites defuntos em busca de fofocas. Se a história da passagem dos mil e oitocentos para os mil e novecentos serve de guia, em breve veremos um período de saturação e relaxamento, em que acusações e apelos à (má) reputação serão ignorados, tratados com cinismo ou até mesmo apresentados como emblemas de honra. A ver.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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