Criticando o "Que Bobagem!" do universo paralelo

Apocalipse Now
29 jul 2023
Autor
livros

 

O ensaio fictício foi um gênero cultivado com brilhantismo por Jorge Luis Borges, que se comprazia em escrever resenhas de livros inexistentes e artigos eruditos sobre fatos históricos que nunca tinham acontecido, ou os hábitos exóticos de grupos humanos que viviam apenas em sua imaginação. Nas últimas semanas, parte do público que assombra as redes sociais no Brasil tem se dedicado a um exercício parecido – criticar e debater avidamente um livro que só existe em suas cabeças – sem, no entanto, um pingo da verve, do talento e da genialidade do grande mestre argentino.

Essa obra, transferida de alguma outra dimensão para a “realidade” virtual das plataformas, teria sido escrita por Natalia Pasternak e ataca a homeopatia com virulência e vitupério, acusa a psicanálise de “charlatanismo” sem que a autora jamais tenha lido uma só linha de Freud e com desconhecimento completo do estado atual da pesquisa científica em psicologia. É um compêndio de preconceitos cientificistas e uma monumental demonstração de ignorância, servindo a interesses escusos do grande capital e da indústria farmacêutica.

Mas, do mesmo modo que no multiverso Marvel é possível encontrar diferentes versões de um mesmo personagem, com diferentes atitudes e personalidades, vivendo realidades distintas, o livro imaginário das redes tem uma contraparte no nosso universo, onde dois autores, Carlos Orsi e Natalia Pasternak, publicaram “Que Bobagem!”, que discute criticamente uma dúzia de sistemas/doutrinas/crenças inválidos que se propõem a descrever aspectos palpáveis da realidade (por exemplo, o funcionamento da mente humana, a relação entre dieta e saúde e quem construiu as pirâmides do Egito).

Nesse livro real, a palavra “charlatanismo” aparece apenas uma vez, num contexto que não tem nada a ver com psicanálise; a crítica à homeopatia é baseada em farta documentação histórica e científica; e o capítulo que trata (entre outras coisas) de psicanálise tem uma lista de 58 referências, incluindo um volume de textos de Freud.

Como coautor de “Que Bobagem!”, posso até trazer aqui uma referência que lemos e consultamos com interesse, mas que acabou não citada no livro por pura falta de espaço e por, no fim, se mostrar redundante com o que já havíamos levantado em outras fontes: o volume de ensaios “Psychoanalytic Education”, organizado por Jules H. Maserman e publicado em 1962. Ali, o psicanalista Judd Marmor, depois de decretar que o papel da psicoterapia é dar ao paciente o dom do “insight”, escreve, maravilhado:

“Mas o que é insight? Para um freudiano significa uma coisa, para um jungiano outra, e para um rankiano, um horneyta, um adleriano ou um sullivaniano, ainda outra. Cada escola oferece sua própria marca de insight. De quem são os insights corretos? O fato é que pacientes tratados por analistas de todas essas escolas podem não apenas responder positivamente, mas também acreditar com força nos insights que receberam. Mesmo interpretações reconhecidamente ‘inexatas’ já mostraram ter valor terapêutico!”

E, mais adiante:

“Portanto, cada teoria tende a se autovalidar. Freudianos obtêm material sobre o complexo de Édipo e ansiedade de castração, jungianos sobre arquétipos, rankianos sobre ansiedade de separação, adlerianos sobre anseios masculinos e sentimentos de inferioridade...”

 

O fato de Marmor achar que tudo isso é bom – e não evidência grave de que o paciente é manipulado de modo a confirmar os preconceitos teóricos do terapeuta, preconceitos sem base nenhuma na realidade e que, provavelmente, incluem a convicção narcisista de que a terapia gera benefício – talvez seja algo que merece análise, mas essa é tarefa que deixo para os profissionais da área.

Adendo: é verdade que existem estudos publicados, alguns inclusive na linguagem dos testes clínicos controlados e randomizados (RCTs), que sugerem que o tratamento psicanalítico pode ser eficaz; mas muitos desses estudos têm problemas, e há trabalhos que põem a conclusão em dúvida. Claro, a lista de pacientes satisfeitos e fãs convictos da psicanálise é enorme.

Mas, como explicamos em “Que Bobagem!”, sínteses das conclusões de um grande número de estudos, como a apresentada no livro “The Great Psychotherapy Debate”, sugerem que (aqui, cito diretamente o “Great Debate”) “não existe evidência convincente de que os ingredientes específicos de qualquer psicoterapia em particular, ou ingredientes específicos em geral, sejam essenciais para produzir os benefícios da terapia”.

Em outras palavras, quando a terapia parece fazer bem, muito provavelmente não é por causa da teoria ou da técnica psicanalítica, mas por causa de características particulares do terapeuta, de sua afinidade para com o paciente e outras questões interpessoais. A melhor evidência disponível que apoia a ideia de que sistemas terapêuticos bem definidos (em oposição a um “efeito terapeuta gente boa” genérico) podem ser benéficos para certas condições específicas pesa a favor da modalidade cognitivo-comportamental, não da psicanálise.

 

O poder do índice

Há sinais de que o livro imaginário, escrito pela Natalia Pasternak de um canto do multiverso onde Carlos Orsi não existe, tenha sido gerado por mentes febris após a leitura do índice do volume real. Deve ser penoso para uma autonomeada elite intelectual ver seu objeto de adoração e distintivo de honra incluído numa lista de “bobagens” que traz, entre outras coisas, deuses astronautas.

Já discorri em outro artigo sobre a escolha do título, mas resumindo: o livro trata de crenças e sistemas que se propõem a expor fatos do mundo, mas cujos supostos “fatos” são demonstravelmente falsos, obtidos por métodos inválidos e têm o potencial de  prejudicar quem acredita neles, seus entes queridos ou a sociedade como um todo.

O intelectual sofisticado(TM) pode se ofender ao ver a psicanálise arrolada ao lado da crença em ETs no Egito Antigo, mas o teórico do astronauta do passado tem a mesmíssima prerrogativa. Consistência empírica e solidez metodológica faltam a ambos os sistemas, tanto o de Freud quanto o de Von Däniken. Esse é o dado objetivo. Níveis relativos de ridículo e absurdo são questões largamente subjetivas.

 

Protestos excessivos

O debate acalorado em torno do livro imaginário parece estar ajudando a impulsionar as vendas da obra aqui no mundo real, o que não deixa de ser uma ironia. Outra, em que não consigo deixar de pensar, é o que significam, afinal, todos os protestos enfáticos contra a obra inexistente. Uma tentativa de abafar a intuição inconsciente de que Natalia e eu estamos certos? Brincadeira.

Mas, falando sério: nenhum dos fatos ou argumentos apresentados em “Que Bobagem!” é exatamente novo. A revista The Lancet já pedia para as pessoas pararem de fingir que homeopatia é uma ideia cientificamente respeitável lá em 2005. A confissão ingênua de Judd Marmor sobre o caráter fantasioso e ilusório do insight psicanalítico foi publicada em 1962, e já havia sido detectada, destrinchada e citada por filósofos da ciência na década de 1980. Autores traduzidos no Brasil anos atrás, como Ben Goldacre (“Ciência Picareta”), Simon Singh e Edzard Ernst (“Truque ou Tratamento”), Martin Gardner (“O Umbigo de Adão”) e mesmo nomes nacionais, como Ronaldo Pilati (“Ciência e Pseudociência”), Paulo Lee (“Ciências Versus Pseudociências”) e Marcelo Girardi Schappo (“Armadilhas Camufladas de Ciência”) já haviam coberto, com competência, ilhas e continentes do mesmo planeta que mapeamos em “Que Bobagem!”. Então, o que está pegando agora?

Parte da reação exacerbada talvez se explique pela presença das redes sociais e pela polarização dos espíritos que ocorreu nos últimos anos. E parte, ouso dizer a maior parte, pelo perfil público de Pasternak (lembre-se, no livro imaginário eu não existo, ela é única autora). O problema, enfim, não são os dados ou os argumentos, mas o fato de virem de uma pessoa famosa e respeitada – e ainda por cima mulher, o que dá às críticas que descambam em ataques pessoais aquele toque grotesco de misoginia que todos aprendemos a reconhecer e desprezar.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto).

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