Uma ponte possível entre o tradicional e o científico

Apocalipse Now
2 set 2023
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A Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou, em meados do mês passado, sua Primeira Cúpula Global de Medicina Tradicional. O evento, conduzido na cidade de Gandhinagar, na Índia, foi precedido por uma campanha publicitária em redes sociais que deixou cientistas e comunicadores sérios de ciência de cabelos em pé, ao apresentar de forma simpática – equivalente a um endosso implícito – práticas alternativas que contrariam as melhores evidências científicas, como homeopatia e naturopatia, e que nada têm de “tradicionais”: a primeira foi inventada na Alemanha há duzentos anos e a outra, nos Estados Unidos, há pouco mais de cem.

Na página de seu site oficial em que apresenta a Cúpula, a OMS oferece um texto introdutório ao assunto, do qual destaco o seguinte trecho:

“Durante séculos, a medicina tradicional e complementar tem sido um recurso integral para a saúde nas famílias e nas comunidades. Esteve nas fronteiras da medicina e da ciência, lançando as bases para textos médicos convencionais. Cerca de 40% dos produtos farmacêuticos atuais são baseados em produtos naturais, e medicamentos de referência derivam da medicina tradicional, incluindo aspirina, artemisinina e tratamentos de câncer infantil. Novas pesquisas, inclusive sobre genômica e inteligência artificial, estão entrando no campo, e há indústrias crescentes de medicamentos fitoterápicos, produtos naturais, saúde, bem-estar e viagens relacionadas”.

À primeira vista, este parágrafo contém duas confusões e um enigma. A primeira confusão se dá entre o que alguns filósofos da ciência chamam de “contexto de descoberta” e “contexto de justificativa”.  O contexto de descoberta é aquele de onde o cientista tira suas ideias, e também onde vai encontrar as perguntas que deseja responder, os problemas que se propõe a solucionar. Já o “contexto de justificativa” é onde o cientista executa o trabalho pesado de testar hipóteses, controlar fatores de confusão, conduzir experimentos, produzir ou buscar evidências – enfim, tudo o que permite chamar uma descoberta de realmente científica.

Quando afirma que “cerca de 40% dos produtos farmacêuticos atuais são baseados em produtos naturais, e medicamentos de referência derivam da medicina tradicional, incluindo aspirina”, a OMS afirma que as medicinas tradicionais são parte riquíssima do contexto de descoberta – o que é verdade. Mas este é apenas o início do caminho, o primeiro passo; é no contexto de justificativa que se separa o joio do trigo, as hipóteses que não passam de “teorias brilhantes” das que realmente funcionam. O fato de a tradição ser uma fonte abundante de boas ideias não significa que a totalidade (ou mesmo a maioria) das ideias que vêm de lá sejam boas; e mesmo entre as boas ideias, nem todas acabam valendo a pena, na prática.

A segunda confusão é entre poder de mercado e legitimidade terapêutica. A existência de “indústrias crescentes de medicamentos fitoterápicos, produtos naturais, saúde, bem-estar e viagens” não implica eficácia ou segurança desses medicamentos e produtos (e nem os supostos efeitos salutares das viagens para estâncias de águas ou outros “locais de cura”). É verdade que o mercado combinado das medicinas tradicionais de China (país que patrocinou o relatório “Estratégia 2014-2023 de Medicina Tradicional da OMS”) e Índia (país-sede da cúpula e que conta com um ministério especial só para promover terapias alternativas) provavelmente já supera os dez bilhões de dólares anuais, mas sucesso comercial e validade científica são mundos muito diferentes.

Já o enigma está contido no breve trecho “novas pesquisas, inclusive sobre genômica e inteligência artificial, estão entrando no campo”. Mas o tradicional não deveria ser um valor em si? Quem precisa desses modismos modernistas?

 

Corda-bamba

O texto introdutório é um exercício de equilibrismo. Em seis parágrafos, a palavra “evidência” aparece nada menos do que cinco vezes. Sendo parte da ONU e, portanto, um órgão político mas também técnico (ou técnico mas também político), a OMS faz malabarismos para embevecer seus patrocinadores que querem capitalizar “tradições” no mercado globalizado de saúde e bem-estar, sem ao mesmo tempo trair seu compromisso com a saúde humana.

Às vezes isso não dá muito certo, como visto na campanha das redes sociais para a cúpula da Índia ou na desastrada decisão de 2019 de incluir diagnósticos da medicina tradicional chinesa na Classificação Internacional de Doenças, mas uma leitura atenta do material sobre medicina tradicional mais atualizado, disponibilizado recentemente pela Organização, deixa claro o embate. É a palavra “evidência” que aparece na introdução da cúpula. E é a manifestação abaixo, escondida numa FAQ perdida no site de imprensa da OMS:

“A integração da MT&C [Medicina Tradicional e Complementar] com os sistemas nacionais de saúde e a corrente principal dos cuidados de saúde deve ser feita de forma adequada, eficaz e segura, com base nas evidências científicas mais recentes. A OMS ajuda os países que desejam adotar as práticas da medicina tradicional a fazê-lo com base científica, para evitar prejudicar os pacientes e garantir cuidados de saúde seguros, eficazes e de qualidade. Uma abordagem baseada em evidências é crucial; mesmo que os medicamentos tradicionais sejam derivados de práticas de longa data e sejam naturais, é fundamental estabelecer a sua eficácia e segurança através de ensaios clínicos rigorosos”.

Esta afirmação, uma verdadeira declaração de princípios, contida na FAQ (publicada com data de 9 de agosto de 2023) contrasta fortemente com o relatório “Estratégia 2014-2023 de Medicina Tradicional da OMS”, publicado em 2013 – há dez anos, portanto –, que contém menções vagas a “medicina tradicional de eficácia, segurança e qualidade comprovadas” (sem explicitar “comprovadas” como, por quais critérios ou por quem) e onde, a certa altura, lemos que “embora haja muito a aprender com os ensaios clínicos controlados, outros métodos de avaliação também são valiosos”.

 

Choque de realidade

Medicina tradicional de eficácia, segurança e qualidade comprovadas por testes clínicos rigorosos é tão-somente medicina. Foi o que aconteceu com a aspirina e a artemisinina, dois medicamentos originalmente inspirados por usos tradicionais de plantas, mas que hoje estão devidamente incorporados ao arsenal da medicina baseada em evidências. Lidas em conjunto, as manifestações atuais da OMS sobre o assunto parecem empurrar as medicinas tradicionais, de modo gentil mas firme, para o contexto de descoberta. E com a intenção plena de deixá-las por lá, o que é bem o contrário do que se insinuava uma década atrás.

A pergunta de dez bilhões de dólares é, claro, até que ponto essa postura é realmente séria ou não passa de um osso retórico atirado aos críticos para distraí-los, enquanto alguma nova atrocidade do porte do CID de medicina tradicional chinesa é costurada nos bastidores. De qualquer modo, é notável ver como a declaração de princípios contida na FAQ condena, ainda que de forma implícita, políticas públicas já implementadas por países que integram práticas alternativas a seus sistemas de saúde.

Na Índia, o ministério encarregado de cuidar da medicina tradicional tem, como parte de sua missão fundadora, a promoção da homeopatia – que jamais foi capaz de se provar nos “ensaios clínicos rigorosos” que a OMS considera “fundamentais” para a integração de terapias ao sistema de saúde. No Brasil, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) não só inclui homeopatia, como costuma ser defendida com o argumento de que tradições, principalmente as associadas a grupos oprimidos, teriam valor epistêmico independente do método científico (o que, dada a composição atual do PNPIC, nem faz muito sentido, já que a maioria das práticas presentes lá tem origem norte-americana ou europeia).

Se levada a sério, a receita apresentada na FAQ explode a ponte entre o tradicional e o alternativo, ao mesmo tempo em que projeta outra, ligando o tradicional ao científico. Se resistir intacta ao bombardeio de interesses políticos, ideológicos e econômicos que certamente vai sofrer, será uma estrutura imponente.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

 

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