Spiricom, a máquina de falar com os mortos

Apocalipse Now
21 out 2023
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esquema do spiricom

 

A década de 1970, principalmente a transição dos anos 1970 para os 1980, foi marcada por um crescente senso de expectativa na comunidade esotérica e paranormal. Uma certeza, no fundo do coração, na boca do estômago, de que algo grande estava por vir, de que em breve, a qualquer momento, o mundo “lá fora” – os cientistas, os jornalistas, os advogados, os políticos, as donas de casa, os militares – iria, finalmente, ceder. A prova irrefutável, que os céticos, os positivistas de mente fechada, vinham cobrando desde as primeiras experiências mediúnicas do século 19, estava à mão – logo ali na esquina. Chegando agora. Não ia demorar.

A cultura popular certamente refletia esse clima. Era o tempo do sucesso estrondoso de “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, onde François Truffaut interpretava uma versão disfarçada do ufólogo da vida real Jacques Vallée. Na TV, seriados como “O Homem de Seis Milhões de Dólares” submetiam seus protagonistas a encontros com o Pé Grande, agentes alienígenas e a experiências de quase-morte. Starlord, o personagem que 40 anos mais tarde viria a protagonizar a série cinematográfica dos “Guardiões da Galáxia”, estreava em 1978 como um super-herói dotado de poderes astrológicos.

No que (ostensivamente) passava por não ficção, Erich von Däniken seguia com sua pregação sobre deuses astronautas, Leonard Nimoy emprestava a gravidade que havia desenvolvido ao interpretar o Senhor Spock de "Jornada nas estrelas" à série documental de TV “Em Busca de...”, que tratava de questões como “monstros, extraterrestres, civilizações perdidas, reencarnação”. Livros de autores que se apresentavam como popularizadores de ciência, a exemplo de Fritjof Capra (“O Tao da Física”, 1975) e Gary Zukav (“A Dança dos Mestres Wu Li”, 1979), sugeriam fortemente que, em breve, os cursos de graduação em Física teriam de incluir meditação transcendental no currículo, ao lado de Cálculo I.

E por que não? Uri Geller, em 1974, havia sido objeto de artigo na Nature; em 1979, James Smith McDonnell, então presidente da companhia aeroespacial McDonnell-Douglas (adquirida pela Boeing em 1996), doou US$ 500 mil (US$ 2 milhões em valores atuais) para que a Universidade Washington de St. Louis abrisse um laboratório de paranormalidade. Em 1978, o Exército americano estabeleceu o Projeto Stargate, para explorar o potencial de poderes paranormais.

 

De onde menos se espera...

Aqui, em meio ao (des)conforto desta terceira década do século 21, é evidente que as expectativas e esperanças de quatro ou cinco décadas atrás eram, no mínimo, exageradas.

O paranormal, o esotérico e o extraterrestre têm seus nichos de mercado, mas as revistas científicas sérias não foram tomadas por artigos sobre o poder de entortar colheres com o olhar. O laboratório financiado por McDonnell caiu no ridículo quando dois adolescentes, com treinamento rudimentar em mágica, enganaram os cientistas e os convenceram de que tinham mesmo superpoderes. Guerras continuam sendo travadas por soldados e bombas, não por médiuns telepatas (o Projeto Stargate foi encerrado nos anos 1990 sem produzir nenhum resultado), os cursos de Física ainda não incluem cadeiras de leitura do I Ching.

Houve popularização, mas a respeitabilidade continua tão distante quanto se encontrava na longínqua noite londrina de dezembro de 1873, quando o advogado William Volckman flagrou a médium Florence Cook disfarçada como o “fantasma” que havia sido invocado para a ocasião – certamente, muito mais distante do que parecia estar em 1973, ou 1981.

O interessante é que a consciência da frustração, na maioria das vezes, não chegou num raio, num momento absoluto de clareza; foi se insinuando aos poucos, em doses (com o perdão da palavra) homeopáticas. Muitos náufragos e sobreviventes daquelas décadas seguem esperando que a Grande Revelação da Verdade para as Massas Ignaras surja a qualquer momento – a prova final continua, para todos os fins e propósitos, onde sempre esteve: logo ali na esquina.

 

... não vem nada mesmo

Há vezes, no entanto, em que alguém tem a ousadia de prometer uma data e um horário para dobrar a esquina. Esse foi o caso do engenheiro George Meek, que em abril de 1982 concedeu uma entrevista coletiva no Clube Nacional de Imprensa de Washington, DC, para anunciar que havia obtido prova científica da vida após a morte: um aparelho chamado Spiricom (de “Spirit” e “Communication”), criado por um técnico de eletrônica dotado de poderes mediúnicos, William O’Neil, permitia manter conversas em tempo real com espíritos desencarnados.

Meek, então um septuagenário, havia se aposentado uma década antes de uma carreira bem-sucedida como engenheiro e executivo, detentor patentes nos campos de ar-condicionado, refrigeração e purificação de ar, para se dedicar a pesquisas nos campos da mediunidade e das curas espirituais. Essas pesquisas levaram-no a viajar pelo mundo – incluindo o Brasil. O espírita brasileiro Hernani Guimarães Andrade (grande adversário midiático do Padre Quevedo) é citado no livro “The Ghost of 29 Megacycles” como um consultor a distância durante estágio iniciais de desenvolvimento do Spiricom.

O livro, sobre a jornada de Meek e O’Neil rumo ao aparelho transcendental, foi publicado em 1985. É de autoria do jornalista John G. Fuller, que também tinha ligações com o Brasil – Fuller havia escrito antes “Arigo – The Surgeon of the Rusty Knife”, um livro-reportagem tolo, crédulo e acrítico sobre José Arigó, o curandeiro falecido em 1971 de quem João de Deus viria a herdar tanto o truque circense da cirurgia sem anestesia quanto o “espírito” do Dr. Fritz (o livro de Fuller foi lamentavelmente publicado no Brasil em 2022, com o título “Arigó e o Espírito do Dr. Fritz”, para promover uma cinebiografia do médium).

 

Robótico

O Spiricom era uma combinação de gerador sonoro, transmissor e receptor de rádio. O gerador produzia uma mistura de ruídos na faixa de frequência voz humana; o transmissor captava esse ruído e o enviada para o receptor, de onde o ruído deveria emergir – esperava-se – contendo alguma mensagem do Além. A ideia de que espíritos precisam de (ou são capazes de usar) ruídos de fundo como matéria-prima para gerar suas comunicações eletrônicas é popular, e vamos explorá-la melhor na semana que vem.

No Clube de Imprensa, Meek anunciou que, usando esse equipamento, O’Neil havia conseguido travar longos diálogos com o espírito de um certo George Mueller – e tinha as gravações para provar! Incluindo vídeos! Além de Mueller, há registros de diálogos com os espíritos "Doc Nick" e "Fred Engstrom", mas Mueller é a estrela do show.

O fato de os celulares hoje não terem aplicativos Spiricom Plus para permitir que os vivos e os mortos batam papo à vontade sugere fortemente que havia algo errado com essa história. O primeiro problema é que o Spiricom jamais funcionou com ninguém além de O’Neil. O segundo é que, nos vídeos, ele sempre aparece de costas para a câmera. Portanto, é impossível garantir que o operador vivo não esteja fazendo as duas vozes da conversa. 

O único ponto vagamente a favor da autenticidade dos diálogos era o fato de as vozes dos espíritos realmente soarem como algo sobrenatural, ou um efeito especial de filme barato de ficção científica. Autores descrevem-nas como “mecânicas”, “robóticas”, “zumbificadas”. O lado suspeito é que toda essa distorção faz com que soem todas muito parecidas. 

Por fim, na edição de janeiro de 1987 da revista Fate – nem de longe uma publicação cética: suas páginas de anúncios classificados traziam seções como “Pirâmides”, “Magia das Runas”, “Numerologia” e, claro, “Autoajuda” – uma reportagem de Terrence Peterson completou a demolição do Spiricom: ele não só apontou inúmeras similaridades entre o modo de falar de Mueller, Nick, Engstrom e de O’Neil (vocabulário, gírias, expletivos) como mostrou que a voz “robótica” de “George Mueller” era compatível com o som gerado quando se usa uma laringe eletrônica para distorcer a voz normal de uma pessoa.

O’Neil acabou diagnosticado com esquizofrenia e morreu num hospital psiquiátrico em 1992. Meek, que havia financiado e promovido o Spiricom, num investimento (assim como o de McDonnell) de meio milhão de dólares, aparentemente nunca reconheceu a fraude. Declarou, num memorial, que O’Neil “havia se tornado a primeira pessoa a registrar mais de 20 horas de comunicação significativa e de mão dupla com pessoas que não mais habitavam seus corpos físicos”. George Meek morreu em 1999, talvez acreditando ainda que a esquina havia sido dobrada.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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