Washington, caipirinha e método científico

Artigo
26 dez 2018
Limões Taiti
CC BY-SA 2.5

Vamos começar por George Washington, mais precisamente, por sua morte. O primeiro presidente dos EUA morreu de “estrangulamento canino”, no final do século 18. Hoje, imagina-se que esse diagnóstico foi dado para uma infecção de garganta, causada por uma bactéria. Algo que nos dias atuais seria facilmente tratado com um antibiótico, e resolvido em poucos dias. Mas, naquela época, a medicina era um pouco diferente.

Em meados do século 18, a medicina atribuía todas as doenças a um desequilíbrio dos ‘humores”. Acreditava-se que o corpo humano continha quatro fluidos, ou “humores”: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra, que correspondiam também aos quatro elementos da natureza, terra, fogo, ar e água, e às estações do ano.  

Quando esses humores estavam em desequilíbrio, a pessoa ficava mal-humorada ou, como dizemos hoje, doente. E para curá-la, era necessário equilibrar os humores. Quando um dos humores estava em excesso, a prática vigente era eliminar a sobra, ou “purgar” o organismo.  Ainda não havia o conhecimento disponível atualmente sobre a importância de métodos de higiene, da nutrição, do saneamento, a respeito da anatomia humana, dos microrganismos e nem das doenças infecciosas.

Assim, quando Washington foi diagnosticado com “estrangulamento canino”, seus médicos decidiram que o melhor tratamento era um cataplasma de besouros em volta do pescoço, e a sangria. A sangria e o uso de purgativos para induzir vômitos ou diarreia eram usados constantemente para equilibrar os humores. O presidente perdeu, nessa “terapia”, 2,5 litros de sangue. Um homem adulto médio tem 5,5 L de sangue. Certamente, a prática acelerou sua morte.

A ideia recorrente de que tratamentos milenares ou muito antigos são válidos simplesmente por serem velhos e carregados da “sabedoria” dos nossos antepassados morre aqui, quando analisamos como era a medicina antes dos conhecimentos científicos adquiridos nos últimos 200 anos.

Graças à ciência, avançamos rapidamente na compreensão de mecanismos de doenças e microrganismos, e hoje podemos desfrutar de tratamentos e medicamentos impensáveis no tempo em que o “tradicional” era a única opção. Antes da descoberta das vacinas, no início do século XIX, uma em cada cinco crianças morria antes de completar cinco anos de idade, devido a doenças infecciosas. Um simples corte ou arranhão poderia ser fatal para um adulto forte e saudável, antes da descoberta dos antibióticos.

Mas como isso funciona? Como a ciência valida medicamentos e tratamentos? Vamos voltar um pouco mais no tempo, para a metade do século 18.

O ano era 1746, quando James Lind, um cirurgião experiente, responsável pela tripulação do navio HSM Sallisbury, da Marinha Britânica, passou do anonimato para... o anonimato! Mesmo hoje, quase ninguém sabe que foi James Lind. No entanto, ele foi provavelmente o primeiro a aplicar o método científico para investigar a causa de uma doença.

Na época das grandes navegações, a Marinha Britânica perdia mais marinheiros para o escorbuto – uma doença causada pela falta de vitamina C no organismo – do que para as guerras.

Ninguém sabia nada sobre vitaminas, sobre os efeitos da carência de vitamina C e, muito menos, que as frutas contêm vitaminas necessárias para manter nossa saúde. Na medicina da época, TODAS as doenças eram causadas por um desequilíbrio dos humores, certo? E pasmem, ainda tem muitas práticas “milenares” que utilizam esse argumento mesmo nos tempos atuais...

Lind questionou o sentido daquilo. Como médico de bordo, viu que sangrar os marinheiros não adiantava nada. Resolveu investigar diários de bordo antigos, e encontrou correlações de taxas mais baixas de escorbuto em navios que levavam carregamentos de frutas e vegetais frescos.

Lind conduziu então seu primeiro experimento, com 12 marinheiros em estágio avançado da doença. Os marinheiros foram divididos em 6 grupos, e cada par foi alimentado com a mesma dieta básica, ficou alojado no mesmo local, e recebeu os mesmos cuidados. Dois receberam um quarto de copo de cidra por dia. Outros dois receberam vitríolo (um produto à base de enxofre). Um par recebeu uma colher de vinagre, outro par recebeu 150 ml de água do mar. Finalmente, um par recebeu um limão e duas laranjas por dia, e a última dupla recebeu um preparado de noz moscada.

O resultado pode ser óbvio para nós, mas foi uma grande surpresa, naquela época, constatar que os marinheiros no grupo das frutas cítricas se recuperaram em poucos dias.

O que Lind fez foi o que chamamos hoje de teste clínico controlado e randomizado. Basicamente, ele separou os doentes em grupos, aleatoriamente, e testou cada grupo com um “remédio” diferente, garantindo que todas as outras condições fossem iguais. Hoje em dia, esse experimento teria sido refinado para se enquadrar no modelo mais rigoroso de teste clínico, que chamamos de teste clínico controlado, randomizado, duplo-cego e com grupo placebo.

O grupo placebo  – que Lind não fez – seria dar algo inerte para um grupo de marinheiros, algo sem efeito nenhum, como água, por exemplo. O duplo-cego consiste em “cegar” os pacientes e os médicos, para que ninguém saiba quem está recebendo o medicamento real, ou o placebo. Isso reduz a possibilidade de que a disposição emocional e psicológica de médicos e pacientes influencie os resultados dos testes.

Muitos testes de práticas alternativas não seguem esses critérios rigorosos, mas têm seus resultados publicados mesmo assim, em revistas de baixa qualidade.

Por isso, quando queremos saber se algo realmente funciona, precisamos de revisões sistemáticas e meta-análises. Essas revisões examinam um grande aglomerado de trabalhos sobre um determinado tema, e realizam uma análise estatística levando em conta a qualidade dos trabalhos. Separam os trabalhos em grupos de acordo com o rigor científico, e excluem aqueles que não se enquadram em um critério mínimo de qualidade.

Assim, não são enviesados por trabalhos que não foram feitos de maneira “cega”, ou que não têm grupo placebo, por exemplo.

O trabalho de Lind foi essencial para que anos depois, a sangria fosse testada nos mesmos moldes, pelo médico escocês Scott Hamilton. Hamilton seguiu o modelo de Lind e dividiu doentes aleatoriamente em dois grupos, um tratado com sangria e um sem tratamento. O grupo tratado com sangria apresentou uma taxa de mortes dez vezes maior.

Então já sabemos o que George Washington e o método científico têm em comum. Mas e a caipirinha?

Ainda demorou 40 anos para que a Marinha Britânica adotasse as frutas cítricas como prevenção para o escorbuto. A descoberta de Lind foi recebida com muito ceticismo pela comunidade médica.

O escorbuto continuou a fazer suas vítimas rotineiramente até 1795, quando o médico chefe da Marinha, Sir Gilbert Blane, resolveu testar novamente a ideia de Lind. Durante uma viagem de 23 semanas para a Índia, ele estabeleceu que todos os marinheiros receberiam uma bebida feita de água, açúcar, suco de limão e rum!

A bebida fez sucesso, e cumpriu seu papel de manter os marinheiros livres do escorbuto. A partir de então, tornou-se obrigatório o carregamento de limões e limas nos navios britânicos, e os ingleses ficaram conhecidos como “Limeys”. E assim a ciência, além de curar o escorbuto, nos deu o protótipo do daiquiri, mojito e da caipirinha!

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

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