Promessa de cura homeopática do Alzheimer não tem base científica

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26 set 2019
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cérebro humano

Em 2016, o jornal “O Tempo”, de Contagem (MG), nos presenteou com uma matéria supostamente revolucionária. Este conteúdo foi requentado recentemente, no mesmo jornal, quase que em reedição. A suposta boa nova até parece bruxaria: o tratamento, executado pela neurologista homeopata Isabel de Oliveira Horta, contra a doença de Parkinson. Drogas tidas como organoterápicos“zeraram” sintomas daquela doença. Outras informações atestam que, em breve, esta nova terapia será testada contra a doença de Alzheimer.  

Se verdade for, em breve teremos uma brasileira laureada com o Nobel da Medicina.  Porém, não farei o papel do ufanista pueril. Daqueles que desejam tanto o prêmio para suas terras, que ignoram que sua torcida é só um aceno precoce a uma ilusão. Não serei movido por fé solidária e acrítica, que luta para garimpar um brasileiro no panteão dos virtuosos. Prefiro bancar o São Tomé, e cuidar para que minha opinião se baseie em realidades. Portanto, fui pesquisar se, de fato, em terras brasileiras, a medicina inicia uma revolução.

O primeiro passo seria encontrar o texto técnico, o artigo científico, em que Isabel de Oliveira Horta demonstra e publica as maravilhas de sua terapia.   A matéria mais recente de “O Tempo” indicava que o artigo estaria na revista “Homeopathy”. A matéria de 2016, deste mesmo jornal, por sua vez, aponta que o experimento seria descrito na “Revista Médica de Minas Gerais”. Estas pistas não me levaram ao artigo. Também não encontrei nada a respeito no site de pesquisa da base de dados médicas PubMed. No currículo da senhora Horta, que está na plataforma online Currículo Lattes, não há a informação que me levem ao esconderijo do artigo.

Fui encontrá-lo  em uma página destinada a leigos. O título da pesquisa é: “Parkinson's disease and constitutional medicine with brain organotherapics”. Foi assinado pela senhora Horta, mais sua equipe. Dos autores, a maioria não tem graduação em ciências biológicas ou da saúde.

A não submissão do experimento a um periódico científico, ou a um congresso, já liquida seu valor. Fazer ciência é expor seus estudos às opiniões de outros técnicos, os pareceristas. Eles revisarão os méritos do artigo, elaborando críticas. E não terão receio em recusar a publicação, caso acreditem não haver mérito.  O cientista que foge deste ritual não deve ser chamado de cientista.   

Mas vamos ao texto da equipe da senhora Horta. A pesquisa é apresentada com a explicação do que é um “organoterápico”. Fico sabendo que são remédios produzidos a partir de órgãos saudáveis de ovelhas ou porcos. De acordo com o texto, estes produtos reconstituem as funções de órgãos humanos combalidos, por um princípio de similaridade. Assim, extratos de cérebros de animais saudáveis servem para tratar doenças cerebrais. Os terapeutas do experimento criaram os organoterápicos, tendo como matéria prima cérebros de porcos ou ovelhas, para tratar a doença de Parkinson. A autora principal explica, também, que em homeopata os medicamentos são “energizados”.

Esta introdução já traz algumas estranhezas técnicas. O que quer dizer medicamento energizado? É um isótopo radioativo com atividade energética que pode ser mensurada por contador Geiger? Ou ela se refere à “mentalização” de palavras com significado otimista? Qual é o controle que ela usa para garantir que esta energia flui da mesma forma para todas as amostras de organoterápicos? Como se mede uma energia mental que vai afetar moléculas de um suposto medicamento?  Sem estas respostas, o trabalho vira pó.

E como um órgão saudável cura um órgão doente? Qual seria a lógica por trás disto?  Os autores não responderam a estas questões, deram-se por satisfeitos em citar outro autor que afirmou isso alguma vez.

Vou, agora, me ater aos métodos da equipe chefiada pela homeopata. É muito importante que qualquer experimento possa ser repetido em outro laboratório, por outros pesquisadores. Assim, alguém poderá confirmar a veracidade de resultados de qualquer experiência.   Para isso, é fundamental descrever passo a passo tudo o que foi executado durante a pesquisa. Ciência requer reprodutibilidade: mesma técnica, mesmos resultados. 

Para que cientistas independentes possam reproduzir o experimento de outro laboratório, a primeira medida é saber qual é o alvo do estudo. Se são pacientes com doença de Parkinson, é necessário descrever qual foi o critério utilizado para diagnosticar esta doença. Mas os autores chefiados pela senhora Horta delegaram o diagnóstico para médicos que não participaram da pesquisa.  Ou seja, não podemos saber se, de fato, todos os pacientes tinham a doença, ou outra semelhante. Mau começo.

Saudável?

Se organoterápicos são produzidos a partir de órgãos saudáveis, é necessário definir como os pesquisadores sabem da saúde do órgão. Faço uma pergunta: o que é um órgão saudável de um animal abatido? Ora, obviamente que a definição médica de víscera saudável não é mesma dada por açougues.

Pois os cérebros das ovelhas e dos porcos abatidos em pouco tempo irão se deteriorar, rumando para a decomposição. Depois de serem retirados de corpos de animais, para emprego medicinal, até quando estes órgãos podem ser considerados saudáveis? Os autores do texto nem deram importância a esse detalhe técnico, portanto não têm base para afirmar que os cérebros eram, de fato, saudáveis. Sem esta informação, os resultados não poderão ser comparados aos de outras pesquisas.

A sucessão de falhas continua, e parece que só vai acabar no último ponto final do texto. Os autores do artigo escrevem que “os locais” afetados pela doença de Parkinson são o diencéfalo e lobo temporal.  E foram justamente estas porções de cérebros de porcos e ovelhas que viraram a matéria-prima dos organoterápicos. A justificativa é que no diencéfalo estaria a substância negra, uma das partes cerebrais mais afetada pela doença de Parkinson.  Erraram: a substância negra não está no diencéfalo, está no mesencéfalo. Os autores procuraram o assoalho no teto. E o que foi parar no organoterápico, eu não sei.

Portanto é muito difícil que outro laboratório consiga reproduzir o experimento chefiado pela senhora Horta, pois a população a ser estudada foi mal definida, e a descrição da forma de produzir o organoterápico é insuficiente: um amontado de detalhes perdidos.

Se algum pesquisador deseja documentar que sua intervenção contra determinada doença funciona, é imperativo que descreva se outras terapias foram ajustadas ou introduzidas. Por exemplo, junto ao tratamento homeopático com organoterápicos, foram fornecidos fisioterapia, nutrição e ajuste da medicação alopata?  Descrever isso em estudos que testam terapias é muito importante. Se ocorreu o efeito, é necessário certificar-se sobre qual das terapias foi a causa.  

Outro ponto crucial. A melhor forma de se provar que determinada terapia funciona é através de estudos randomizados duplo cegos. Adianto que agências reguladoras de saúde sérias só aceitam a eficiência de determinada terapia se dois estudos randomizados duplo cegos demonstraram tal eficácia. Como são estes testes?

Dois grupos demograficamente iguais de pacientes são separados. Pacientes de um grupo receberão um comprimido que contém o medicamento, pacientes do outro grupo receberão um placebo. Este será um comprimido visualmente igual ao comprimido que detém o princípio ativo, mas sem nenhum produto capaz de causar efeitos específicos sobre a saúde humana. Quem prescreve e analisará as respostas ao tratamento não sabe quais dos pacientes recebeu o remédio “verdadeiro”, e quais tomaram o placebo. Os pacientes participantes também não sabem (daí o termo duplo cego).  O tratamento será considerado benéfico se sua eficiência bater a do placebo.  

O time de autores, portanto, não prova eficiência terapêutica de nada, pois o estudo não seguiu os métodos adequados para isso.

Zerado

Se o medicamento “zerou” a doença de Parkinson, como alega uma das reportagens de O Tempo, como isso teria sido feito? A doença de Parkinson é degenerativa, ou seja: destrói o cérebro progressivamente. Mais explicitamente: esta afecção mata neurônios.

 Portanto se o tratamento “zera” a doença de Parkinson, presume-se que regenera neurônios e interrompe o processo destrutivo. Ou, faz os neurônios remanescentes renderem muito mais, de modo a suplantar a escassez provocada pela destruição de seus pares.  Talvez, aumentem a eficiência das sinapses, ao elevar a carga de neurotransmissores.

Mas a explicação dada ao jornal foi outra: “o medicamento homeopático convencional e o organoterápico equilibram a expressão genética do DNA e modificam ordens genéticas ‘erradas’, por meio de tendências a adoecer herdadas”.

Esta frase tem formulação semântica ambígua. E um de seus significados pode ser interpretado como “a tendência de adoecer herdada seria o meio do organoterápicos de equilibrar a expressão genética”.  Parece ilógico. Mas pode até ser mesmo este o significado, pois a homeopata parece não se assentar no razoável.

Mas, outra forma de interpretar a frase é que os organoterápicos mudam a expressão genética que causaria a tendência de adoecer.  Só que há outra crítica técnica, pois apenas uma minoria de pacientes desenvolve doença de Parkinson por questões genéticas ou hereditárias.  Portanto, a chave da terapia não está nos genes ou, ao menos, não apenas nos genes.  

E como uma medicação mudaria o DNA? Será mesmo que o time chefiado pela doutora Horta elaborou uma forma de terapia genética a partir de porcos e ovelhas mortos?  De modo simples e amador, o staff conseguiu modificar um gene ou grupo de genes, que nem foram identificados, no meio de um enorme emaranhado de informação genética?  Como foram tão precisos? Acreditar nesta possibilidade é acreditar que existe um milagreiro muito eficiente trabalhando junto à senhora Horta.

Ao que me parece, a homeopatia persiste justamente por ter defensores que desprezam métodos científicos rigorosos. Assim, eles não enfrentam os trâmites metodológicos adequados, e não produzem pesquisa de qualidade.  Logo, concluem o que desejam concluir. Do contrário, embarcariam em bons estudos e logo perceberiam o desastre que é a homeopatia, e a abandonariam. 

Seguiriam o conselho implícito na publicação da revista Lancet, que apregoa o fim da homeopatia, essa prática fixada em um livro démodé, de dois séculos atrás. (“The end of homoeopathy”: The Lancet 366.9487 (2005): 690.) Mas preferem propalar escusas, e continuar com o velho resmungo de que a homeopatia é boicotada por um mercado punitivo, que privilegia a lucrativa alopatia. 

Ignoram que gerentes de convênios médicos buscam por economias e redução de gastos. Fosse a homeopatia assentada em boas práticas, haveria muitos hospitais por aí, totalmente homeopatas a distribuir bons tratamentos e os muito desejados cortes de custos. 

 Luciano Magalhães Melo é médico neurologista e colunista da folha de São Paulo 

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