“Liderança feminina” fez diferença na pandemia?

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26 abr 2021
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A posição de destaque – muito merecida – de líderes mulheres durante a pandemia levantou alguns questionamentos sobre a influência do gênero de presidentes e primeiras-ministras no sucesso da contenção da crise sanitária em seus países.

Embalada num compreensível entusiasmo diante de casos notáveis de protagonismo feminino no enfrentamento do primeiro grande desafio imposto à Humanidade neste novo século, a pergunta “Por que as mulheres saíram-se melhor do que os homens na contenção da pandemia?” vem, no entanto, carregada de pressupostos duvidosos, incluindo um viés que resvala no machismo. A primeira questão, a mais fundamental, claro, é se o fenômeno que se pretende investigar realmente existe. Há, de fato, dados que demonstram que líderes mulheres mostraram-se, consistentemente, mais competentes do que os homens?

O machismo surge quando, sem investigar a realidade dos fatos, especula-se que, sim, as mulheres se saíram melhor, e isso porque são mulheres, com características estereotipicamente “femininas”, como “sensibilidade” e “intuição”. Irracionalismo, ainda que prestigiado socialmente em certos contextos, ainda é irracionalismo, e acusar metade da espécie humana de ter uma afinidade especial pela falta de juízo ainda é derrogatório e preconceituoso.

Alguns autores arriscaram inclusive delinear estilos de liderança “femininos” e “masculinos”, onde as mulheres seriam mais propensas a evitar o risco, e priorizar o bem-estar da população, e os homens seriam mais inclinados a priorizar a economia e tomar riscos. Tudo isso soa muito tirado do chapéu, para a metade feminina do par de autores deste artigo manter-se “delicada” como se espera de uma dama de fino trato, e não dizer claramente de onde ela acha que essas ideias realmente saíram.

 

A média e a amostra

Não se trata aqui de negar a massa de pesquisa que tem, consistentemente, mostrado diferenças médias de traços de personalidade entre homens e mulheres, quando se avaliam grandes grupos de indivíduos de ambos os sexos; mas sim, de apontar que é, no mínimo, ingênuo proceder a tentativa de aplicar esses resultados, de forma mecânica, a um número ínfimo de casos individualizados, dentro de uma situação altamente específica – a pandemia atual.

A avaliação pretendida torna-se ainda mais suspeita quando seu resultado final apenas reproduz preconceitos culturais sobre o que seria “típico” do homem e da mulher, sendo que a pesquisa sobre diferenças de personalidade também mostra que a variação dentro de cada sexo é maior que a variação entre os sexos: em outras palavras, duas mulheres tendem a ter personalidades mais diferentes, uma da outra, do que a mulher “média” difere do homem “médio”.

Isso é especialmente importante porque as diferenças médias de personalidade entre os sexos são encontradas em estudos com amostras equilibradas que podem chegar a conter milhares de indivíduos, enquanto o mundo atual tem menos de 200 países, e menos de 10% deles são governados por mulheres.

Para explicitar o elefante na sala, o número de fatores de confusão que permeia essa equação simplista:

 

 {(bom controle da pandemia) = (líderes mulheres fofas, sensíveis e intuitivas)}

 

é gigante.

 

Fatores de confusão

Quando se deseja estabelecer uma relação de causa e efeito, é preciso eliminar vieses e fatores de confusão. Se não fizermos isso, estaremos observando correlações e inferindo causas de forma espúria. Covariação ou correlação – quando um fator muda, o outro muda também, ou quando um está presente, o outro também aparece – é algo que sugere uma relação causal, mas não basta para prová-la.

Mesmo quando dois fatores estão realmente interligados, a conexão pode ser de outro tipo – ambos podem, por exemplo, ser efeitos de uma causa comum. Por exemplo, seres humanos que usaram saias na infância tendem a ter estatura mais baixa, na idade adulta, do que os que só usaram shorts e calças. Mas não é o figurino da infância que torna o adulto mais alto ou mais baixo, nem a estatura adulta que determina o figurino infantil: o que acontece é que ambos, vestimenta e estatura, são influenciados pelo sexo.   

No caso das líderes mulheres, o mesmo cuidado deve ser aplicado. Artigo publicado no periódico PLOS ONE analisou líderes de 175 países em relação a gênero e mortalidade por COVID-19, e não encontrou relação significativa entre o fato de o governante ser mulher e número de mortes causadas pelo SARS-CoV-2. Com todas as limitações reconhecidas pelos próprios autores do artigo, porque logicamente o sucesso durante uma crise sanitária não se mede somente por número de óbitos, o estudo permite algumas reflexões interessantes, a saber:

 

Países que elegem mulheres são mais democráticos e igualitários. Isso, por si, já seria um preditor de maior sucesso na implementação de medidas preventivas. O fator cultural pesa muito mais aqui do que características dos líderes;

Os países liderados por mulheres durante a pandemia são, em geral, de área pequena, o que facilita a adoção de medidas restritivas;

Havia apenas 16 países liderados por mulheres entre os 175 analisados, o que também dificulta uma comparação válida com nações chefiadas por homens, mesmo com ajustes estatísticos;

A comparação que deu origem à aparente constatação de que mulheres são líderes melhores compara alhos com bugalhos, pois contrapõe pessoas extremamente bem preparadas e com treinamento formal, como Jacinda Ardern e Angela Merkel, a governantes populistas e despreparados como Jair Bolsonaro e Donald Trump;

A amostra utilizada por proponentes da tese do “sucesso feminino causado pela feminilidade” é muitas vezes enviesada, pois tende a excluir países liderados por homens e que tiveram um bom desempenho na pandemia, como Vietnã;

Contradizendo a premissa de que é o “fator feminino” na política que fez diferença na pandemia, países com maior número de mulheres no Parlamento apresentaram maior índice de mortalidade. Se o “feminino” fosse um fator determinante, como explicar isso? Talvez seja melhor admitir o mais provável, de que a hipótese faz tanto sentido quanto a de que o uso de saias na infância causa baixa estatura.

 

Outros possíveis fatores de confusão: em muitas sociedades, mesmo nas mais igualitárias, o sarrafo que as mulheres têm de superar para chegar a posições de poder é mais alto. Homens despreparados têm muito mais chance de “blefar até ganhar” do que mulheres incompetentes.

Além disso, as características ditas “femininas” descritas por alguns autores, segundo o trabalho da PLOS ONE, são: saber ouvir, a tendência a se aconselhar para tomada de decisões impactantes, a habilidade de ver a situação como um todo, e a proficiência em gerenciamento de risco. Ora, essas características são, na verdade, desejáveis em qualquer líder. O fato de líderes mulheres terem essas características torna-as boas governantes, e isso não quer dizer que muitos líderes homens também não as tenham.

 

A questão certa

Avaliar a influência do gênero em políticas públicas e estilos de governo requer muito mais do que uma ilação genérica que tenta se justificar com impressões difusas, populares, de que mulheres são “ternas” e “maternais” (adjetivos, aliás, muito mal definidos), e por isso, “tomam conta” de suas populações e se saem melhor em crises sanitárias.

Dada a hipótese “mulheres governaram melhor do que os homens durante a pandemia por causa de características intrinsecamente femininas” é necessário, enfim, verificar se os pressupostos da hipótese (“mulheres governaram melhor do que os homens durante a pandemia”) se sustentam, e se a causa estipulada (“características intrinsecamente femininas”) se aplica. Como o artigo na PLOS ONE deixa abundantemente claro, nenhum dos dois critérios chegou, até o momento, nem perto de ser satisfeito.

Também talvez esteja mais do que na hora de avaliar se a pergunta (“por que mulheres governaram melhor?”) tem relevância. O número de questões propostas pelo universo é infinito, afinal, e a curiosidade humana só é capaz de focar atenção numa minúscula parcela. Por que essa?

Por que, ao contemplarmos os inúmeros fatores e diferenças que contribuem para a construção de histórias nacionais de sucesso ou fracasso, o gênero do governante representaria um enigma tão saliente? Por que não anos de educação, renda per capita, hábitos culinários, precipitação pluviométrica, quilômetros de praia?

Há décadas já que se acumulam críticas, necessárias e pertinentes, ao modelo da “tábula rasa”, que vê o ser humano recém-nascido como uma tela em branco, uma massa infinitamente maleável, onde a educação, a experiência vivida e o livre arbítrio podem imprimir e inscrever qualquer coisa.

Mas é importante não perder de vista que a tábula rasa surgiu como reação extremada a outro erro, muito mais antigo, o do essencialismo – a ideia de que membros de certos grupos compartilham de uma essência comum, imutável e inescapável: homens “precisam” ser agressivos e ciumentos, mulheres “têm dificuldade para” decidir racionalmente. A verdade é muito mais complexa do que qualquer um desses espantalhos, e é crucial que, ao desviarmos de um, não caiamos nos braços do outro.

 

Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry, professora visitante da Fundação Getúlio Vargas (FGV), colunista do jornal O Globo e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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