Contradições sobre aborto na extrema-direita dos EUA

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29 jun 2022
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militantes da KKK

Um artigo publicado esta semana no periódico científico Information, Communication & Society é uma amostra de até que ponto vão as contradições e a dissonância cognitiva de indivíduos da extrema-direita americana com relação ao aborto. Elaborado e aceito para publicação antes da polêmica decisão recente da Suprema Corte dos EUA que reverteu um entendimento de 49 anos considerando a interrupção voluntária da gravidez um direito constitucional das mulheres americanas - o que barrou sua proibição por legislações estaduais nas últimas décadas -, o estudo analisou textos sobre o assunto abrangendo mais de 15 anos de discussões no Stormfront, um fórum de nacionalistas brancos americanos na internet. O resultado revela uma mistura que vai de teorias da conspiração a propostas eugenistas, temperada com crenças religiosas que ora consideram o aborto um assassinato pecaminoso, ora aceitável se usado no controle de populações “inferiores” e na eliminação de indivíduos “indesejados”.

Criado em 1995 por Stephen Donald “Don” Black, integrante da organização racista americana Ku Klux Klan (KKK), o Stormfront é considerado o primeiro grande site de ódio da internet. Diferentemente de muitos fóruns de discussão de extremistas na rede, geralmente “escondidos” na chamada deep web e acessíveis apenas com softwares especiais, o Stormfront pode ser acessado com um navegador comum. Assim, ganhou popularidade entre os radicais de direita americanos nas últimas décadas, saindo de apenas 5 mil usuários em 2002 para estimados cerca de 300 mil em 2015. Muitos tópicos estão abertos a não inscritos, o que faz com que seu alcance provavelmente seja muito maior, com seu discurso muitas vezes atingindo, influenciando e refletindo o debate em segmentos ditos “conservadores” (e não "extremistas") da sociedade americana.

Diante disso, o Stormfront também tem sido usado como um “espelho” da extrema-direita dos EUA em estudos de ciência social. E foi o que fez um grupo de pesquisadores liderado por Yotam Ophir e Rui Wang, do Departamento de Comunicação da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo. Partindo de um universo de cerca de 9 milhões de postagens e respostas coletadas do site extremista entre setembro de 2001 e março de 2017, eles usaram ferramentas de aprendizado de máquina e análise qualitativa para identificar e classificar 30.725 textos sobre aborto, trabalho que descrevem no artigo intitulado “Weaponizing reproductive rights: a mixed-method analysis of White nationalists’ discussion of abortions online”.

“A internet forneceu um canal novo, coletivo, participativo, interativo, anônimo e desregulado para os nacionalistas brancos se comunicarem e espalharem sua mensagem de forma ampla e rápida, e se tornou um terreno fértil para recrutamento e unificação do nacionalismo branco”, justificam. “Nosso corpo de pesquisa captura quase 20 anos, então damos particular atenção a mudanças no conteúdo temático com o tempo, e em resposta a eventos externos relacionados ao aborto, como declarações de políticos e decisões judiciais de grande destaque. Também examinamos onde padrões morais diferentes são aplicados a brancos e não brancos quando o tema é o aborto”.

Para tanto, eles procuraram responder três questões: quais foram os tópicos e temas usados no discurso sobre aborto dos nacionalistas brancos no Stormfront entre 2001 e 2017; como os nacionalistas brancos usaram o aborto como ferramenta de diferenciação política e se foi abordado de forma diferente em relação a mulheres brancas e não brancas; e se e como os tópicos e temas relativos ao aborto mudaram durante o período e foram influenciados pelos acontecimentos.

 

Conspiração, misoginia

Em reposta à primeira pergunta, os pesquisadores identificaram 44 tópicos de discussão distribuídos em três grandes eixos temáticos. O primeiro deles foca em questões de raça e cultura, especialmente como os nacionalistas brancos veem os “outros” (termo que usam para se referir a judeus, negros, hispânicos, populações nativas, asiáticos etc, em resumo, qualquer um que não seja um branco cristão ocidental) e o que acreditam ser um “grande plano” - orquestrado principalmente pelos dois primeiros integrantes deste grupo - para acabar com a hegemonia dos brancos nas sociedades ocidentais, no que chamam da “Grande Substituição” (Great Replacement em inglês, ou Grand Remplacement em francês, termo originalmente cunhado pelo escritor e teorista da conspiração francês Renaud Camus, para descrever o que acredita ser um processo deliberado de mudança da demografia dos países europeus via imigração em massa e grandes diferenças nas taxas de natalidade entre estes imigrantes, principalmente de países islâmicos, e as locais, brancas).

“Muitas discussões neste tema orbitaram em torno da teoria conspiratória do genocídio branco e o papel que os abortos supostamente têm nisso”, relatam. “Em todos os casos, a estrutura social tradicional branca e conservadora é apresentada como superior, e os abortos como um ‘ataque à família e uma tentativa de perturbar a harmonia da união do casamento, na qual a sociedade repousa e da qual depende’, como definiu um usuário. Estes comentários claramente contradizem as alegações dos nacionalistas brancos de que não são supremacistas, e também destaca a importância de papéis de gênero claramente delineados, com base em um sistema de dois sexos dentro da estrutura familiar dos nacionalistas brancos”.

Esta interseção do discurso dos supremacistas brancos com o dos defensores do patriarcado com relação a uma estrutura familiar dita “tradicional” já era esperada pelos pesquisadores, que observam outros pontos em comum entre os dois grupos, como sentimentos de vitimização nas mãos dos chamados “marxistas culturais”, que atacariam suas liberdades e valores, justificando atos de separatismo e rebelião em defesa de seus “direitos humanos”, numa clara cooptação da linguagem usada pela esquerda progressista.

“Conquistas do feminismo e do progressismo na segunda metade do século 20 são vistas pelos nacionalistas brancos como uma crise de identidade”, comentam. “Em outras palavras, o valor ‘intrínseco’ da masculinidade branca é posto em questão por políticas de diversidade e inclusão. Para o nacionalismo branco, a ideia de que uma mulher não precisa mais de um homem é uma ameaça à masculinidade branca, à feminilidade branca e à raça branca como um todo. Quando mulheres trocam dar à luz por suas carreiras, reduzem a taxa de natalidade de brancos por meio de abortos e escolhem casar com homens não brancos, a própria continuidade de uma raça branca pura fica ameaçada. O aborto se torna então uma questão de autonomia, e negar à mulher o controle sobre seu corpo é visto como uma tentativa de manter sua subordinação e dependência dos homens”.

Desta forma, acrescentam os pesquisadores, na “masculinosfera” online as culturas misógina e racista muitas vezes se unem nas respostas à percepção de que a hegemonia dos homens brancos nas sociedades ocidentais está em crise e sob ataque de feministas e outros grupos “liberais”, com os fóruns de discussão e outros espaços online aproximando estes diferentes grupos identitários e permitindo sua “polinização cruzada”.

 

Racismo e religião

Aí chegamos ao segundo grande eixo temático identificado na análise, cujos tópicos giraram em torno dos argumentos antiaborto e pró-escolha (pro-choice em inglês, termo usado para se referir aos que defendem o direito das mulheres em decidir sobre o procedimento), com ênfase às condições que justificam ou não sua prática. Aqui, o discurso dos nacionalistas brancos se mostrou frequentemente contraditório e descolado da realidade, ignorando estatísticas de que mulheres não brancas recorrem ao aborto mais frequentemente que as brancas nos EUA, e, assim, também servindo para diferenciar politicamente os “verdadeiros” integrantes do grupo extremistas dos “outros”.

“Com esperado, as potenciais contradições e dissonâncias cognitivas em torno da moralidade do aborto são resolvidas pela introdução de cognições adicionais sobre a superioridade dos brancos e inferioridade dos não brancos, mais uma vez negando as alegações dos nacionalistas brancos de que não são supremacistas”, apontam. “Quando em referência a mulheres e bebês brancos, o aborto é apresentado como homicídio a ser evitado a todo custo, exceto, para alguns usuários, em casos extremamente raros como risco à saúde da mãe, defeitos congênitos do feto ou estupro”.

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O direito à escolha das mulheres, assim, é outro alvo particularmente relevante neste eixo temático, com a pró-escolha sendo reenquadrada como “pró-morte”. Aqui, os pesquisadores observaram comentários como que “a sociedade protege os direitos das culpadas enquanto nega estes direitos aos inocentes” e que o aborto é uma traição e um comportamento antiético, “a pior de todas as coisas, o assassinato de uma criança”, algo “pior que criá-la sem um pai” e, portanto, tendo como opção a entrega para adoção, claro que para uma família branca de estrutura tradicional, em que o homem é o “chefe do lar” e a mulher a “cuidadora”.

Em geral, alguns dos usuários do Stormfront só admitem a prática do aborto por mulheres brancas em situações específicas. A primeira, numa demonstração de suas inclinações eugenistas, como uma “maneira adequada de melhorar a raça branca livrando-a de condições como autismo e Síndrome de Down”, com um usuário questionando “por que gostaríamos de ter qualquer pessoa inferior em nosso pool genético?”. Não por acaso, um argumento pró-aborto pouco visto nos círculos pró-escolha fora da direita radical conservadora. Outras são circunstâncias envolvendo casos de estupro ou incesto e, mais raramente, de risco à vida da mãe. Em todas, porém, reiterando que o procedimento ainda assim é um “assassinato”.

Quando as mulheres não são brancas, no entanto, o discurso dos nacionalistas brancos muda completamente. Aí, o aborto passa a ser não só aceitável como muitas vezes desejável, com os extremistas novamente ignorando o fato de que já são as mulheres das minorias étnicas americanas as que mais se submetem ao procedimento no país. Neste caso, os usuários do Stormfront discutem o aborto como possível “solução” para o problema da pobreza não só nos EUA como no mundo em desenvolvimento, limitando o crescimento de populações do chamado “Terceiro Mundo”, que devido à sua “moralidade inferior” produz “crianças em excesso”.

O mesmo vale para negros, que segundo os nacionalistas brancos deveriam ser alvo de “políticas de filho único”, que incluiriam abortos “grátis” e esterilizações forçadas. Postagens que muitas vezes também promoviam a volta da segregação nas escolas, pois para eles as jovens negras são mais “promíscuas” e, portanto, uma ameaça à “pureza” das meninas brancas.

“Nos dados, o aborto cumpre um papel duplo e mutuamente recursivo, sendo usado para apoiar a veracidade do genocídio branco por um lado, enquanto é sugerido como uma solução para os problemas advindos da inferioridade moral dos não brancos, por outro”, observam os pesquisadores.

Alguns nacionalistas brancos, porém, mantêm oposição ao aborto em todos os casos por convicções religiosas.

“Complicando ainda mais a relação entre o nacionalismo branco e os direitos reprodutivos estão os laços do movimento com a direita religiosa, com o cristianismo frequentemente tendo papel central na identidade coletiva de muitos nacionalistas brancos”, ressaltam os pesquisadores. “Para muitos clérigos fundamentalistas, permitir às mulheres controlar sua fertilidade em geral, e o aborto em particular, é visto como uma ameaça à ordem ‘natural’ do sexo, a moralidade tradicional e a lei de Deus”.

Não é por nada que durante quase meio século o aborto tem sido uma questão central para a direita cristã dos EUA, parte de sua “guerra santa contra o secularismo humanista”, que inclui ainda temas como homossexualidade e o fim da educação religiosa nas escolas, ambos “pecados” que arriscam atrair a “ira de Deus” contra o país. Mesmo o ex-presidente Donald Trump, hoje apontado como um dos grandes responsáveis pela decisão da Suprema Corte em 24 de junho último que derrubou o direito constitucional das americanas ao procedimento – foi ele quem indicou três dos juízes que deram um placar de cinco votos a quatro pela revisão do entendimento do tribunal no caso Roe vs. Wade tomado em 1973 -, era alvo de críticas dos usuários do Stormfront devido ao seu posicionamento historicamente ambíguo sobre o assunto (em 1999 ele se declarou pró-escolha, só mudando de posição a partir de 2011, quando começou a cortejar o eleitorado republicano para suas ambições políticas).

“É importante lembrar que diferenças no discurso sobre aborto também pode resultar da heterogeneidade religiosa do movimento nacionalista branco”, frisam os pesquisadores. “Aqueles que são parte do grupo teológico racista e antissemita ‘Identidade Cristã’, por exemplo, podem ser mais inexoráveis quanto ao aborto do que cristãos protestantes. Já partidários da ‘neo-eugenia’ podem nem se identificar como cristãos. Pode ser que pessoas com diferentes pontos de vista dentro do movimento nacionalista branco tenham focado em diferentes tópicos de discussão, mas esta é uma possibilidade que não podemos apoiar com nossos dados”.

 

Política e legislação

O terceiro eixo temático identificado nas discussões dos nacionalistas brancos sobre aborto no Stormfront envolve a política e a legislação em torno do procedimento. Os tópicos abrangem desde ataques a políticos específicos conhecidos por sua posição pró-escolha, como o ex-presidente Barack Obama, a debates sobre como outros países abordam a questão, discussões sobre leis estaduais anti-aborto e seu conflito com Roe vs. Wade (afinal, os dados do estudo só vão até 2017, e portanto todas as postagens são anteriores ao próprio início do processo que levou à recente mudança de entendimento constitucional, relativa à constitucionalidade de uma lei instituída pelo estado do Mississipi em 2018 que proibiu a maior parte dos procedimentos após a 15ª semana de gravidez), e direitos e liberdade.

Neste grupo também foram incluídas argumentações sobre se ataques a clínicas de aborto constituem atos de terrorismo, bem como os posicionamentos de figuras proeminentes e acadêmicos sobre a questão, e seu envolvimento em teorias conspiratórias, como as que citam o bilionário George Soros, acusado de financiar movimentos pró-escolha. Curiosamente, o nome do ex-presidente Donald Trump aparece de novo entre os tópicos de discussão como defensor do aborto.

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Este também foi um eixo cuja proeminência apresentou um aumento no volume das discussões em alguns momentos ao longo da linha do tempo dos dados, em resposta a eventos externos. Nesta análise temporal e de mudanças nas temáticas, os pesquisadores registraram aumentos de atividade em torno de episódios como o assassinato, em 31 de maio de 2009, do médico George Tiller, perseguido durante anos por militantes antiaborto por realizar procedimentos em estágios avançados de gravidez; e a publicação ou veiculação de reportagens sobre casos judiciais ou posicionamentos de políticos sobre o tema.

De modo geral, no entanto, as discussões conspiratórias e racionalizações sobre em que situações o aborto seria aceitável dominaram os debates. As análises mostram que a maioria dos tópicos neste eixo temático ganhou proeminência com o tempo, como o potencial uso eugenista dos abortos para atingir a supremacia branca; os ataques ao feminismo, com um aumento dramático a partir da subida ao poder de Trump; fetos e bebês, como quando o estado de Dakota do Norte aprovou, em 2013, a primeira legislação na linha “batimento cardíaco”, que proíbe o aborto a partir da sexta semana, quando muitas mulheres ainda nem sabem que estão grávidas e antes do momento em que a maioria dos abortos são realizados.

 

Impacto na sociedade

Segundo os pesquisadores, o discurso nacionalista branco sobre o aborto tem um impacto prejudicial para a sociedade americana em dois níveis. Primeiro, que o aborto não só é visto como uma maneira de controlar os corpos das mulheres como para legitimar e normalizar posições racistas extremas. Segundo, como visto com outros temas médicos nos últimos anos, como a vacinação, o tema do aborto acaba politizado de maneiras de distorcem a ciência e minam a confiança da sociedade nela como uma maneira de obter conhecimento sobre o mundo.

“Estudos mostram que quando discutem temas médicos e científicos, os usuários do Stormfront frequentemente usam argumentos existentes que são prevalentes na sociedade em geral, mas o fazem com intensidade única, muitas vezes introduzindo novos argumentos racistas e desinformação”, destacam os pesquisadores. “Este problema é exacerbado por pesquisas indicando que a discurso em plataformas extremistas se espalha para a grande mídia, como no caso do endosso do apresentador da Fox News Tucker Carlson à teoria da Grande Substituição, ou quando a deputada Marjorie Taylor Greene promove conspirações do QAnon”.

Desta forma, argumentam, “entender o discurso no Stormfront pode nos preparar para as circunstâncias em que estes sistemas de crença alternativos extremistas e propaganda identitária proliferam em esferas populares”.

“No caso do aborto, estas crenças repousam no conceito da cidadania fetal começar na concepção e são apenas raramente questionadas para mulheres brancas, enquanto são promovidas para mulheres negras como uma maneira de equilibrar a lacuna demográfica em uma dita ‘guerra racial’”, concluem.

“O nacionalismo branco no Stormfront emprega mecanismos sexistas para reproduzir a dominância social branca. Por meio de uma linguagem supostamente biológica de diferenças raciais e sexuais, eles condenam o aborto em brancas como assassinato, frequentemente culpando outros, como os judeus, por sua prevalência entre as mulheres brancas (embora, como mencionado, as taxas de aborto entre mulheres brancas sejam menores), enquanto encorajam o uso do mesmo procedimento como uma tática legítima para limitar o crescimento populacional daqueles que consideram inferiores (em geral, todas as pessoas não brancas). Tais discussões são usadas tanto para solidificar uma identidade coletiva em torno de valores masculinos, antifeministas e cristãos quanto para introduzir ideologias de supremacismo branco sem (exclusivamente) se basear em racismo extremo e em aberto”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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