O curioso caso da “apometria”: uma palavra órfã

Artigo
29 ago 2022
fool cap

 

Em um vídeo viral no YouTube, um “coach quântico”, em conversa com uma psicóloga, fala sobre a aplicação de uma “técnica quântica” chamada apometria no processo motivacional.

Graduanda de Física que sou, travei. É fácil lembrar conceitos da Física moderna e saber se o que ele dizia fazia sentido ou não (spoiler: não fazia). Mas a “apometria” eu não conhecia. Nunca tinha ouvido nem sequer uma menção, o que me fez automaticamente questionar se havia prestado atenção suficiente nas aulas. Logo, encontrei o react da Gabriela Bailas, Física, Ph.D. em Física de Partículas, e é curioso que mesmo ela, que já bem gastou seu tempo revisando as descontextualizações da quântica, também duvidou do próprio conhecimento ao ouvir sobre a apometria. Ela fez a pesquisa dela e eu, a minha.

Em um levantamento informal entre graduandos, doutorandos, professores titulares e livre-docentes do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, ninguém tinha ouvido a palavra “apometria” no contexto da Física. Como, então, explicar o nascimento desse conceito, dito científico, que a Física, sua mãe teórica, não reconhece? Geração espontânea?

Não, seria ainda mais místico. A realidade é um pouco mais humana.

Chegada ao Brasil com o nome de hipnometria, a apometria credita sua fundação ao farmacêutico bioquímico porto-riquenho (que não é físico) Luís Rodrigues, em parceria com o médico cirurgião geral e ginecologista Dr. Azevedo (também não físico), nos anos 1960, no Hospital Espírita de Porto Alegre (HEPA). O Dr. Azevedo convence-se da eficácia do tratamento quando sua esposa, uma médium, participa de uma sessão e atesta que deu certo.

A apometria declara-se não religiosa (mas defende que somos compostos de sete corpos espirituais que nos aproximam do Divino), e seria física (mas aplicada em cima de reencarnações do espírito), no plano do tempo, chamada de a terceira dimensão (na física, o tempo costuma ser a quarta dimensão, mas tudo bem, né?). Seria um processo de cura, onde a energia vital do indivíduo é chamada de “magnetismo”, que confronta supostos parasitas chamados de obsessores (que “sugam” o tal magnetismo vital). Essa “indução da projeção da consciência aos espaços extrafísicos” é supostamente feita através de pulsos magnéticos que seriam gerados pelo estalar dos dedos e pela voz do terapeuta. E eu pensava que o magnetismo era causado por cargas elétricas em movimento…

O ponto desse ensaio não é atacar terapeutas e praticantes de técnicas “alternativas”, que são dos mais variados tipos e de diferentes níveis de idoneidade. Mas é necessária uma reflexão crítica a respeito das descontextualizações massificadas de termos científicos, pensar sobre como e onde nascem e florescem as pseudociências e os porquês, especialmente quando envolvem práticas que fazem promessas de curas milagrosas de distúrbios psiquiátricos e enfermidades graves, colocando em risco quem já está em uma situação delicada.

Uma pesquisa realizada na Faculdade de Educação da USP sugere que as fake news que se valem de termos científicos têm maior probabilidade de ser consideradas verdadeiras, bem como as presentes em blogs e sites que parecem confiáveis. Isso é um indicativo de que a ciência ainda é vista como fonte de informação correta e verdadeira, e esse é um embasamento que as pessoas buscam para acreditar ou não em algo. Mas a falta de letramento midiático e habilidade de conferência das fontes permite que a desinformação circule. Se a ciência de fato não ocupa o espaço de tirar as dúvidas da população, de maneira aberta, acessível, dialógica e abundante, ele fica aberto a quem quer que seja que ofereça explicação compreensível, mesmo que falsa.

E a pseudociência sabe, e se aproveita, disso. A questão da oratória é que ela tem uma base sofista: a verdade pertence a quem produz o discurso mais convincente.  Cabe aos ouvintes julgar e questionar cada argumentação. Mas quem tem tempo, hoje em dia?

Natalia Pasternak, em entrevista ao Roda-Viva, responde sobre a incompatibilidade da ciência com os anseios da população desesperada por informação, durante a pandemia: “O tempo da ciência é incompatível [sim, mas] não com a informação. Ele é incompatível com a ansiedade das pessoas pela informação definitiva, correta e absoluta. Porque isso não existe em ciência”. Mas saber que isso não existe na ciência depende de entender o que é o processo científico.

E sabemos, pela pesquisa de Percepção Pública da Ciência e Tecnologia de 2019, que o consumo de ciência nas diversas mídias e participação em eventos de divulgação científica caiu de 2015 para 2019. As razões são diversas, mas problemas de acesso aparecem para a maioria da população. Habituar-se com a cultura científica e entender o já citado processo científico requer contato com esses espaços e ideias.

A comunicação entre cientistas e sociedade é cheia de percalços: a sociedade não entende como a ciência funciona porque não lhes contam, e os cientistas não entendem como a sociedade não entende como a ciência funciona pois estão tão inseridos nela que parece simplesmente óbvio. E o óbvio não precisa ser dito. Só que precisa.

Pensemos no efeito Dunning-Kruger. Pessoas dotadas de um conhecimento apenas superficial sobre determinado assunto tendem a  superestimar sua competência: sabem tão pouco sobre aquilo que não conseguem nem mensurar o tanto que ainda precisam aprender. Já pessoas altamente competentes tendem a subestimar a própria capacidade – talvez porque tenham uma compreensão mais concreta das dificuldades e incertezas do campo. Essa “ignorância sobre a ignorância” pode dar aos pouco competentes um senso exagerado de confiança – nosso coach do vídeo é um exemplo. Para muitos, admitir que não sabe é uma falha. Para poucos, é ter a responsabilidade de não espalhar informações sem fundamento.

Cientistas passam por rigorosos processos de revisão para serem considerados sérios. Tudo aquilo que for publicado com o nome de um pesquisador o acompanhará, para sempre. Isso traz quase um senso excessivo de responsabilidade sobre o que se diz. Os pseudocientistas, ao contrário, falam muito, explicam pouco e, no final, a responsabilidade recai no indivíduo, que não acreditou o suficiente ou não “vibrou” corretamente.

Cientista não é comunicador. A pesquisa não deve se basear no que gera mais engajamento ou espaço na mídia. Como gerar interesse e mostrar para as pessoas, mesmo em momentos de desespero, que más e falaciosas práticas são, sim, nocivas, e podem ser desmascaradas com o conhecimento que elas já possuem, ligando logicamente o tico e o teco, ou simplesmente dando voz às suas dúvidas?

Segundo as vozes da minha cabeça (e de Carlos Vogt), seria do escopo da divulgação científica criar o encanto, o interesse, e da educação científica formal cristalizar esse senso crítico. Ainda que essas duas parecessem tão órfãs quanto a apometria, ainda esperança.

 

Marília F. Themer é publicitária, mestranda do programa de Divulgação Científica e Cultural no Labjor-Unicamp e graduanda em Física Biomédica no IFGW-Unicamp. Esse texto é resultado de trabalho na disciplina ‘Jornalismo Científico’, coordenada pela professora doutora Sabine Righetti no Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural MDCC, do Labjor-Unicamp

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