Jornalismo declaratório e neutralidade performática são agentes de desinformação

Artigo
24 out 2022
TV Velha

 

Misoginia, discurso de ódio, homofobia, fabricação de desinformação... Nada disso foi criado recentemente, mas é inegável que toda essa pauta negativa e indesejável ganhou proporções gigantescas, impulsionada pelas campanhas presidenciais de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Nesse conjunto, também é preciso incluir o aumento dos ataques à imprensa por aqueles a quem a própria imprensa insiste em dar visibilidade exagerada, mantendo um comportamento paradoxal – dar publicidade frequente àquilo que condena.

A figura do jornalista imaculadamente objetivo, que funciona como uma espécie de central de despacho que se limita a organizar e encaminhar declarações (no jargão jornalístico, “aspas”) de diversas fontes, como um autômato desprovido de identidade ou senso crítico, construindo falsas equivalências entre fatos e mentiras, é algo que a jornalista Margaret Sullivan critica no artigo If Trump Runs Again, Do Not Cover Him the Same Way: A Journalist’s Manifesto, publicado no diário americano Washington Post. Ali, Sullivan pede uma mudança urgente no que ela classifica como “jornalismo tradicional”.

Identificar que um problema existe e reconhecer que precisa ser corrigido são os primeiros passos para encontrar a solução. Estabelecer que essa solução seja implementada em um tempo razoável é o passo seguinte. A tríade identificar-reconhecer-implementar parece, porém, não pertencer à cartilha da imprensa que continua a adotar uma postura ingênua ou cínica, perdendo tempo com pautas estúpidas (só para ficar em um exemplo: repercutir em fotos e textos as “colinhas” escritas na mão do atual presidente da República em aparições televisivas).

Por mais de vinte anos, o jornalismo alimentou a falsa polêmica de que haveria dúvida científica a respeito da relação causal entre o fumo e o câncer. Neste caso específico, relacionado à indústria do tabaco, houve uma campanha ativa de desinformação, com a participação de cientistas desonestos, plantados para fomentar uma dúvida na sociedade.

As empresas não repudiavam frontalmente a relação de causa e efeito entre o hábito de fumar e o desenvolvimento de câncer – um fato amplamente aceito nos dias de hoje –, mas adotavam a retórica de que não havia um consenso na comunidade científica a respeito do assunto. Esta história está descrita no livro "Merchants of Doubt", de Naomi Oreskes e Erik M. Conway.

Por causa do surgimento da COVID-19, nunca se falou tanto em ciência e saúde na imprensa. Durante dois anos, a pandemia forçosamente pautou diariamente as redações com um assunto sobre o qual jornalistas e sociedade tiveram que aprender a escrever, ler e a conversar – pessoas que nunca tinham tido contato com artigos científicos, preprints e pesquisa clínica se viram obrigadas a redigir sobre isso.

A missão fundamental do jornalismo é bem informar o público, de forma rápida e objetiva. Para isso, foram desenvolvidos procedimentos e ferramentas – por exemplo, “dar voz” ao maior número possível de atores sociais, e sustentar uma postura de neutralidade frente às causas defendidas por esses atores. Essas ferramentas, no entanto, são meios para um fim: a disseminação da melhor informação possível. Quando sua aplicação, pelo contrário, degrada a qualidade da informação, é irracional seguir usando-as. Insistir dogmaticamente nisso, sob tais condições, representa uma inversão de valores, reduz a prática profissional a performance vazia e, no limite, transforma princípios válidos em máscara para cinismo e irresponsabilidade.

E foi nessa armadilha que parcela importante da imprensa caiu no início da pandemia, mantendo viva a ideia insustentável de que cloroquina e hidroxicloroquina seriam apostas razoáveis de tratamento. Diferentemente da “grande imprensa”, em março de 2020, começo da pandemia, a Revista Questão de Ciência já alertava para a falta de embasamento teórico para a utilização desses medicamentos.

Esta revista já publicou diversos textos acerca da necessidade premente de se adotar uma postura crítica na direção de um jornalismo sério e consciente da cooptação de seus processos e procedimentos por agências de marketing com produtos a vender, profissionais de relações públicas com clientes a promover – e por extremistas políticos e charlatões em busca de acesso aos corações e mentes do público.

Curadoria de conteúdo responsável e comprometida com o interesse público é o que separa um veículo jornalístico de uma plataforma de rede social. Lavar as mãos desse dever sob qualquer pretexto – seja o de “contar uma boa história”, de “ouvir o outro lado” ou de salvar as aparências de uma suposta imparcialidade – é, além de falha ética, eliminar o único diferencial que a imprensa ainda tem.  A central de despacho de aspas pode ser operada por um algoritmo, afinal.

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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