Canadá e Europa cobram transparência de testes clínicos

Questão de Fato
23 out 2019
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Pipeta em laboratório

O Departamento de Saúde do Canadá alterou, em março, a maneira como lida com a enorme quantidade de dados que a indústria envia quando busca aprovação de novos medicamentos, tratamentos e equipamentos médicos, ou novas aplicações para os já existentes. Boa parte dessas informações agora é pública, tanto quando o pedido é aprovado como quando é rejeitado. 

Após 120 dias da decisão, a Health Canada, a agência governamental responsável pela aprovação e controle de medicamentos e procedimentos médicos, vai postar os estudos clínicos, começando pelas drogas com novos princípios ativos e acrescentando medicamentos e equipamentos ao longo de um período de quatro anos. Esses documentos, produzidos pelas empresas interessadas, geralmente com mais de mil páginas, registram métodos, objetivos e resultados de testes clínicos, que avaliam segurança e eficácia de novos produtos promissores. Essa documentação é importante para que as agências regulatórias façam sua tomada de decisão, assim como os dados sobre pacientes individuais envolvidos nos testes.

Até agora, a Health Canada postou a documentação relativa a quatro drogas recém-aprovadas – uma para psoríase em adultos, duas para dois tipos de câncer de pele e a quarta para câncer de mama receptores hormonais positivos em estágio avançado – e deve publicar em breve os relatórios para 13 novas drogas e três equipamentos médicos, aprovados ou rejeitados desde março.

A decisão canadense é semelhante à adotada quatro anos atrás pela Agência Europeia de Medicamentos (European Medicines Agency - EMA) da União Europeia. Já a americana Food and Drug Administration (FDA) continua a tratar desse tipo de informação como confidencial e raramente o disponibiliza para o público. 

Defensores de transparência afirmam que relatórios sobre testes clínicos devem ser abertos ao público para que se entenda como as agências reguladoras tomam suas decisões, e para avaliar segurança e eficácia de novas drogas ou equipamentos de forma independente. Eles também acreditam que esses relatórios forneceriam às sociedades médicas dados mais completos para estabelecer parâmetros para seu uso terapêutico e determinar se artigos publicados em revistas especializadas sobre testes clínicos – importante fonte de informação para clínicos e sociedades médicas – são precisos. 

“Agências reguladoras geralmente sofrem com falta de recursos, prazos curtos e têm outras prioridades, então algumas vezes não detectam alguns detalhes ocultos nesses relatórios de testes clínicos”, diz Matthew Herder, diretor do Health Law Institute da Dalhousie University, da Nova Escócia.

No ano passado, por exemplo, pesquisadores canadenses questionaram a eficácia do Diclectin (chamado Diclegis nos EUA), indicado para enjoos e náuseas na gravidez, depois que um estudo clínico e outras informações se tornaram públicos. A equipe havia solicitado as informações com base em uma antiga norma, que exigia dos cientistas a assinatura de termo de confidencialidade e que os dados permanecessem sigilosos, quando publicassem seus resultados. Segudo Herder, por causa disso, poucos cientistas pediam acesso aos dados.

Duchesnay, a empresa de Quebec que produz o Diclectin, saiu em defesa do medicamento e as sociedades americanas e canadenses de obstetras e ginecologistas continuam a recomendá-lo, mas a nova análise levantou dúvidas entre os médicos de família do Canadá. Em janeiro, o College of Family Physicians, que tinha publicado dois artigos favoráveis ao remédio em sua revista, publicou uma correção, contestando a independência e precisão de ambos e recomendando cautela na interpretação das indicações de uso do novo produto.

Herder e outros advogados, além de pesquisadores independentes que defendem maior transparência na pesquisa médica, estão pressionando a FDA a seguir o modelo canadense e europeu, sem sucesso até agora. O programa europeu, que entrou em vigor em 2016, liberou acesso a estudos clínicos de 132 produtos, submetidos a análise depois de janeiro de 2015.

“É importante ter várias agências reguladoras disponibilizando esses dados,” diz Peter Doshi, editor-associado do British Medical Journal (BMJ) e professor associado de pesquisa em serviços de saúde farmacêuticos na Faculdade de Farmácia da Universidade de Maryland. Do jeito que as coisas estão agora, “se a FDA aprova primeiro, o que geralmente acontece, não sabemos de nada até a Health Canada ou a EMA tomar uma decisão”, diz Doshi. “E nem todos os medicamentos ou equipamentos vão ser aprovados, ou mesmo submetidos a essas outras agências.”

Além disso, a redundância reduz o impacto das mudanças na política de uma agência reguladora. A EMA, por exemplo, mudou-se de Londres para Amsterdã no início do ano por causa do Brexit. “Por isso, a publicação de dados clínicos foi temporariamente suspensa, assim como outras atividades, até que a agência esteja devidamente instalada na nova sede”, explica Anne-Sophie Henry-Eude, chefe de acesso a documentos e dados clínicos. 

Sandy Walsh, porta-voz da FDA, diz que a agência não tem a mesma liberdade que os similares canadense e europeu no que se refere à liberação de estudos. “A legislação americana regula a liberação de informação comercial secreta e confidencial, e os dados pessoais privados, de forma diferente d lei canadense e europeia”, afirmou em e-mail. 

No entanto, alguns especialistas em direito dizem que a flexibilidade das normas do FDA é bem maior do que a agência faz crer. Agências federais têm uma autonomia considerável para determinar “o que constitui informação comercial confidencial”, dizem Amy Kapczynski, professora de Direito da Universidade de Yale e codiretora da Collaboration for Research Integrity and Transparency (CRIT), de Yale, e Jeanie Kim, que era pesquisadora da faculdade em 2017, quando ambas assinaram um artigo no The Journal of Law, Medicine & Ethics.

Em resposta a um pedido de entrevista, a Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, Megan Van Etten, diretora de Relações Públicas do grupo comercial, enviou e-mail manifestando preocupação da indústria quanto à nova política da Health Canada, afirmando que ela “pode desencorajar os investimentos em pesquisa biomédica, ao revelar informações comerciais confidenciais”. 

Joseph Ross, professor associado da de Medicina e Saúde Pública em Yale e codiretor, como Kapczynski e outros, do CRIT, afirma que estudos clínicos contêm poucas informações que empresas precisariam manter em sigilo, e qualquer informação desse gênero poderia ser retirada facilmente antes de sua liberação. Um documento de 2015 da atual Academia Nacional e Medicina também insistia que a FDA liberasse os dados de testes clínicos.

Essa é a estratégia da Health Canada, que discute possíveis aspectos confidenciais com a empresa responsável pelo produto. “A Health Canada, porém, é responsável pela decisão final sobre o que é ou não confidencial e o que vai ser publicado”, diz o porta-voz Geoffroy Legault-Thivierge. Ocorre o mesmo na EMA, que faz uma negociação com as empresas produtoras de remédios e equipamentos. “Geralmente discordamos, mas há diálogo,” admite Henry-Eude. 

Pesquisadores independentes que reavaliam novas drogas afirmam que esses relatórios são essenciais, porque os dados de que precisam não estão imediatamente disponíveis nas publicações médicas. Uma análise mostrou que apenas metade dos testes clínicos analisados foram publicados em revistas especializadas em tempo hábil, e um terço sequer é publicado. Além disso, os estudos publicados contêm uma quantidade menor de dados que os estudos originais, segundo Tom Jefferson, epidemiologista que trabalha com a Cochrane, o grupo de pesquisadores que realiza e publica análises das evidências científicas na área médica. 

Além disso, “artigos de revistas especializadas tendem a enfatizar os benefícios e minimizar, ou mesmo ignorar, efeitos adversos” que constam do estudo clínico original, segundo Jefferson. Uma análise realizada pelo Quality and Efficiency in Health Care, de Colônia, Alemanha, encontrou “tendenciosidade considerável” na maneira como os resultados de pacientes são descritos em artigos científicos. Acesso público aos dados desses estudos pode lançar luz sobre essas discrepâncias.

A FDA já flertou, no passado, com a divulgação dos resultados de testes clínicos. Em janeiro do ano passado, a agência lançou um programa-piloto para postar relatórios de até nove medicamentos recentemente aprovados, se houvesse aceitação por parte das empresas. “Estamos comprometidos com o aumento da transparência do nosso trabalho na FDA”, disse na época o comissário Scott Gottlien, que se demitiu dois meses depois. No entanto, apenas a Janssen Biotech, subsidiária da Johnson & Johnson, concordou, e o Erleada, para câncer de próstata, é até hoje a única publicação do programa.

Em junho, a FDA anunciou que está avaliando tirar o foco do programa e investir numa melhor comunicação das análises feitas pelos especialistas da agência, que avaliam os pedidos de aprovação de novos medicamentos. Essas análises são públicas para as drogas liberadas desde 2012. Segundo Doshi, porém, essas análises “não substituem os relatórios completos dos testes clínicos”, e revelam apenas a posição do cientista da FDA sobre o pedido de liberação. “Sem os dados do estudo clínico, pessoas como eu são privadas de informações importantes, e não podem fazer uma avaliação própria.”

Pesquisadores independentes também querem acesso aos dados completos de testes clínicos realizados antes que os portais canadense e europeu fossem abertos. Desde 2010, a EMA tem fornecido a pesquisadores acesso a esses testes desde que solicitado, enquanto a Health Canada é mais transparente, postando os estudos requisitados para drogas e equipamentos aprovados ou não em seu novo portal, que todo público pode acessar. Até agora, doze pacotes de informações sobre medicamentos e equipamentos mais antigos estão disponíveis e onze outros pedidos estão sendo analisados.

De vez em quando, a FDA fornece essas informações em resposta à Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act – FOIA), mas, segundo Ross, para isso pesquisadores precisam “investir muito tempo e esforço”. A Faculdade de Direito de Yale acionou a FDA em nome de dois grupos de advocacy depois que a agência informou que precisaria de anos para atender a seu pedido de dados sobre duas drogas para a hepatite C. Em 2017, Yale venceu a causa e os grupos receberam os dados, que estão avaliando.

De acordo com Walsh, a FDA não sabe quantos testes clínicos liberou dentro da versão americana da lei de acesso à informação, mas segundo Doshi e outros essa autorização é rara e quase sempre resultado de processos legais ou ameaça de ação na Justiça. Em 2011, Doshi pediu acesso aos testes clínicos do Tamiflu, um antiviral para gripe. “O pedido ainda está lá, passados oito anos. Eles não negam o pedido, simplesmente sentam em cima”, conta. 

Pesquisadores também podem pedir esses dados diretamente às indústrias. Pelo menos 24 das 35 empresas que compõem a PhRMA assinaram um compromisso pelo “compartilhamento responsável de dados de testes clínicos”, com a liberação de resumos dos relatórios de dados para medicamentos aprovados e avaliação de pedidos para abertura de todos os dados para médicos e pesquisadores “qualificados”, que apresentem projetos de pesquisa para avaliação. 

Mas, segundo Herder, pesquisadores temem não receber acesso se as empresas não se sentirem confortáveis ou simpatizarem com suas propostas e, além disso, elas controlam o que vai ou não ser divulgado.

A britânica GlaxoSmithKline (GSK) foi mais longe que as demais farmacêuticas no que se refere à liberação desses dados para acesso público. A empresa começou a postar seus relatórios de testes clínicos em 2013, por meio de seu portal online Clinical Study Register. “Publicamos mais de 2.500 relatórios de testes clínicos e cerca de 6 mil resumos de resultados, tanto positivos como negativos”, explica Andrew Freeman, diretor e chefe de política médica da empresa. “A GSK é líder no setor no que se refere à transparência.”

Ainda assim, a GSK controla o nível de remoção de material sensível, diz Jefferson, da Cochrane, que tentou usar material postado no portal da empresa sobre a vacina contra o HPV. “Aspectos importantes, como as narrativas de efeitos adversos, estão bloqueados, então o uso que podemos fazer desses estudos é relativo.”

Muitos pesquisadores, porém, não sabem que a Health Canada e a EMA disponibilizam estudos clínicos. Uma pesquisa online com 160 pesquisadores que trabalham com revisões sistemáticas mostrou que 133 nunca pensaram em acessar dados regulatórios e, destes, 117 não sabiam onde poderiam acessar esse tipo de material. Segundo Herder, da Dalhousie, eles continuam a confiar nos dados limitados publicados em revistas especializadas. “Na teoria, transparência é ótimo, mas não serve para nada se as pessoas que fazem análises independentes não vão atrás desses dados,” afirma.

Barbara Mantel é repórter em Nova York e escreve sobre saúde e outros temas sociais. Este artigo foi publicado, originalmente, em inglês no site Undark, e pode ser lido aqui.

 

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