“Sistema político deve trabalhar para que especialistas sejam ouvidos”

Questão de Fato
3 abr 2020
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esboço de coronavírus

Nascido em São Paulo, o imunologista Michel Nussenzweig vive há décadas nos Estados Unidos e, atualmente, lidera um grupo da Universidade Rockefeller, em Nova York, na busca de uma imunoterapia para conter a COVID-19. A equipe de Nussenzweig  pretende isolar anticorpos de pessoas que contraíram e se recuperaram da COVID-19, procurar pelos genes responsáveis pela produção destes anticorpos e depois cloná-los, criando uma espécie de “fábrica” de anticorpos para ajudar as pessoas que estão doentes.

Esta é uma abordagem que já se mostrou bem-sucedida no combate ao HIV. “Vamos fazer tudo isso o mais rápido que pudermos e então, se descobrirmos coisas que são potencialmente úteis clinicamente, vamos começar a fabricá-las para testar na prática clínica”, disse o pesquisador.

Em entrevista à Revista Questão de Ciência (RQC), Nussenzweig descreveu seu trabalho e falou também sobre os impasses na esfera política que vêm atingindo a luta contra a pandemia tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e o esforço dos cientistas sérios para tirar algum sentido da enxurrada de estudos sobre o vírus e as possíveis terapias, que tomou conta da literatura científica.

“O processo de revisão pelos pares, que é fantástico, não deve mudar. Mas ele leva tempo”, apontou. “Então, quando submeto um estudo para um periódico, demora meses para que ele seja publicado, pois as pessoas têm que analisar ele com cuidado, avaliá-lo, fazer seus comentários e eu, como cientista, tenho que responder a estes comentários. Muitos deles são bastante úteis para melhorar ou corrigir ou o que seja. Mas isso leva um tempo muito longo”, acrescentou.

“Não queremos é que alguém tenha algo bom e tenha que esperar meses para publicar. O BioRxiv, o Medical Archives, todos estes repositórios, sim, têm muita coisa, mas todos nós sabemos como ler esse material. Talvez alguém no público leigo não consiga fazer isso, mas os especialistas vão ser capazes de avaliá-los”, disse.

 

A seguir, os principais trechos da entrevista, editados para maior clareza e concisão:

 

RQC – O processo de identificar, clonar e reproduzir anticorpos já deu resultados contra outros vírus, certo?

Sim, de fato já fizemos bastante trabalhos com o HIV usando este método, e se formos procurar na PubMed ou outros repositórios de artigos científicos, por HIV, vamos encontrar muito coisa a respeito.

Começamos com o HIV, encontramos anticorpos que podiam neutralizá-lo e eram muito potentes, passamos para a clinica aqui no Rockefeller e de fato, a Gilead, uma grande empresa farmacêutica, licenciou os anticorpos para tentar fazer remédios de verdade para as pessoas.

Então, sim, já fizemos isso com sucesso com o HIV. E também clonamos os anticorpos, por exemplo, contra o vírus da zika. Trabalhamos com colaboradores brasileiros, e colaboradores mexicanos, para clonar os anticorpos contra o zika. Publicamos um artigo na Cell, e vários outros artigos descrevendo estes anticorpos e como eles neutralizam o vírus.

Na verdade, produzimos um artigo que ou acabou se ser publicado, ou será publicado em breve, no PNAS mostrando que os anticorpos do zika, se modificados de certa maneira, podem impedir macacas grávidas de terem problemas com seus fetos.

Então esta abordagem é algo que tem sido feito, tem sido usada com diversos vírus. Meus colegas e alunos têm feito coisas assim para a malária, influenza. Mas com o HIV é onde esta estratégia com os anticorpos avançou em termos de testes clínicos.

 

RQC- E como esta tecnologia pode ganhar escala, se vamos usá-la contra algo tão contagioso contra a COVID19?

Bem, é uma proteína que temos que fabricar. Então, é um grande esforço. Não é algo que você gostaria de fazer se houvesse alternativas. Então, se tivermos uma boa vacina, não teríamos que, necessariamente, fazer isso para um grande número de pessoas. Mas mesmo uma boa vacina não é uma terapia.

Se conseguirmos desenvolver medicamentos baseados em moléculas mais simples, seria fim de papo e não precisaríamos dos anticorpos. Mas se estas duas coisas, vacinas e medicamentos mais simples, não forem muito eficazes, então poderemos precisar dos anticorpos, seja para prevenção, seja para tratamento.

 

RQC- Quando seu grupo identificar os genes que codificam para os anticorpos e cloná-los, esta clonagem será feita onde? Num microrganismo?

Vamos clonar estes genes primeiro em bactérias e, a seguir, em células de mamíferos, para produzir os anticorpos. Podemos fazer isto no laboratório e depois testar os anticorpos que obtivermos, para ver a capacidade deles de neutralizar o vírus.

É impressionante a quantidade de cientistas que estão trabalhando juntos para fazer isso. Temos cientistas da Fundação Chan-Zuckeberg, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, da UCSF e diversos aqui no Rockefeller, todos trabalhando juntos neste projeto, desenvolvendo os ensaios em que poderemos testar estes anticorpos rapidamente para saber se de fato se ligam, bloqueiam a entrada na célula e inibem o vírus.

Vamos fazer tudo isso o mais rápido que pudermos e então, se descobrirmos coisas que são potencialmente úteis clinicamente, vamos começar a fabricá-las para testar na prática clínica.

 

RQC - Há uma corrida, neste momento, em busca de coisas que possam ser usadas contra este novo vírus e ajudar as pessoas infectadas. Há uma crescente preocupação na comunidade científica com o impacto disso na qualidade da produção. O senhor acha que esta poluição da literatura científica pode ser um problema? Como podemos lidar com isso?

Não vejo assim. Antes de mais nada, os periódicos querem publicar essas coisas. E vão fazer o processo de revisão por pares. E o processo de revisão pelos pares, que é fantástico, não deve mudar. Mas ele leva tempo. Então, quando submeto um estudo para um periódico, demora meses para que seja publicado, pois as pessoas têm que analisar ele com cuidado, avaliá-lo, fazer seus comentários e eu, como cientista, tenho que responder a estes comentários. Muitos deles são bastante úteis para melhorar ou corrigir ou o que seja.

Mas isso leva muito tempo. Para situações como a atual, o que queremos ver é que, se as pessoas têm resultados, eles devem ser públicos de devem ser publicados rapidamente. Eles podem ser avaliados com o tempo, mas devem estar disponíveis, pois sim, temos muita poluição, mas um bom cientista pode avaliar este tipo de coisas e dizer se tem valor, ou não.

O que certamente não queremos é que alguém tenha algo bom e precise esperar meses para poder publicar.

 

RQC – O senhor disse que os preprints (estudos científicos divulgados antes da devida revisão pelos pares) são necessários neste momento, e que os especialistas saberão separar o joio do trigo. Mas esses alguns desses resultados vêm sendo explorados na mídia, por políticos...

Bem, isso pode ser verdade, e pode ser verdade aqui (nos EUA) também. Há um conflito entre pessoas que não são, de fato, especialistas, e pessoas que são. Mas, no fim, o sistema político deve trabalhar para que os especialistas sejam ouvidos. Sei que no Brasil isto é um problema. E sei que este é um problema muito sério. Aqui (nos EUA) é um problema sério também, mas aqui, e creio que em muitos países no mundo, os políticos estão, ao fim e ao cabo, sendo forçados a ouvir os especialistas.

 

RQC – Esperamos que isso realmente aconteça.

Aqui, de fato, estão sendo forçados. Podemos ver isso com o que está acontecendo com Trump. Ele diz que vai fazer isso e aquilo, mas no fim nada acontece, e ele acaba se corrigindo no dia seguinte. As coisas estão se corrigindo.

No Brasil, não estou familiarizado com o que está acontecendo, mas o que eu sei é que a pessoa no poder não está ouvindo muito bem (os especialistas). Isto é um problema e ele deve ser forçado a escutar pelas pessoas que têm, sabe, uma cabeça mais equilibrada.

 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

Colaborou Cesar Baima

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