Colaboração científica Rússia-Brasil sofre com guerra

Questão de Fato
13 abr 2022
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Catedral do Moscou

 

Depois de anos estagnação a partir do fim da União Soviética, em 1991, a produção científica da Rússia deu um salto nos anos recentes. De acordo com um artigo, publicado na revista Nature, o número de papers de cientistas do país de Vladimir Putin cresceu cerca de 10% apenas entre 2019 e 2020, colocando-o em 18º no ranking mundial de 2021. Esse avanço está em risco, no entanto. Em razão da guerra na Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro, pesquisadores do mundo todo passaram a evitar colaborações com seus colegas russos, voluntariamente ou a pedido de seus governos.

De acordo com o texto da Nature, algumas das sanções impostas contra a Rússia pelo Ocidente proíbem explicitamente as colaborações de pesquisa. Um exemplo é a Alemanha, que adotou uma das medidas mais agressivas, suspendendo oficialmente toda a cooperação científica com o país a partir de 25 de fevereiro até novo aviso. Sua posição foi apoiada pela Fundação Alemã de Pesquisa. Além disso, políticos alemães estão pressionando outros governos a seguirem o exemplo.

Embora em menor grau e não como determinação do governo, isso também está repercutindo no Brasil. Que o diga Vladislav Kupriyanov, físico russo, mas que se considera um cientista brasileiro, professor de física matemática na Universidade Federal do ABC (UFABC), que veio em 2005 para fazer doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e resolveu ficar. Embora não tenha uma colaboração formal com conterrâneos, mantém conversas com alguns deles, que atuam na mesma área. “Tenho contatos com cientistas com quem estou mantendo uma discussão”, conta. “Um deles é o Maxim Grigoriev, do Lebedev Physics Institute”.

O contato começou ainda em 2018 no Simpósio da Sociedade Matemática de Londres, que aconteceu na Universidade de Durham, no qual os dois foram palestrantes convidados. Para aprofundar as conversas, Kupriyanov tinha uma visita científica à Rússia marcada para julho. “A ideia era apresentar um seminário no Instituto Lebedev”, diz. “Havíamos planejado, para depois desse evento, discussões sobre a colaboração formal em si”.

Por causa da guerra, ele decidiu cancelar a viagem. “Há problemas logísticos e também uma certa insegurança, já que eu sou abertamente contrário à guerra e ao regime atual da Rússia”, explica. “A troca de e-mails é importante para discutir o projeto, mas, pelo menos para mim, uma discussão in person é essencial para de verdade começar a executá-lo. E, por enquanto, esse encontro não vai acontecer”.

O engenheiro mecânico e doutor em Economia Fred Leite Siqueira Campos, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também está tendo dificuldades para manter sua colaboração com colegas russos. Ele coordena dois projetos, o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Rússia (PRORUS), vinculado à sua universidade; e a Rede de Pesquisas sobre a Rússia (REDERU), que envolve, aproximadamente, meia centena de pesquisadores brasileiros e russos.

Atualmente, o PRORUS desenvolve projetos com pesquisadores da Universidade dos Urais e da Universidade Tecnológica Russa. Dentro da REDERU há vários outros projetos de colegas brasileiros com pesquisadores da Rússia. “O primeiro está relacionado a estudos de experiências de processos de ensino/aprendizagem (voltados para a América Latina e Rússia)”, diz. “O segundo, à percepção do Brasil sobre aquele país”.

Para ele, os projetos são importantes por vários motivos: estreitamento dos laços entre os dois países, promoção de conhecimento recíproco, possibilidade de intercâmbio internacional e agendas conjuntas em pesquisa, por exemplo. “Por causa da guerra, estamos com dificuldades para realizar reuniões e as assinaturas de acordos novos estão temporariamente suspensas”, revela. “Mas, acredito que, no curto prazo, os projetos voltem a ter novos adendos”.

Colega de Kupriyanov na UFABC e pesquisador da mesma área, Dmitry Vasilevich, russo naturalizado brasileiro, também não tem projetos formais de pesquisas com colegas do seu país natal. “Minha colaboração com cientistas de lá se dá de forma pontual”, explica. “Fazemos um trabalho quando há uma boa ideia. O artigo conjunto mais recente foi submetido para uma revista em novembro de ano passado”.

Embora não sofra impacto direto da guerra, ele lamenta as “profundas mudanças” sofridas pela ciência russa. “A primeira é o isolamento internacional”, diz. “Os cientistas do país não podem viajar, não podem comprar livros, não podem acessar periódicos. Mais importante é a situação econômica e política em geral. Tudo isso gera a sensação de que a Rússia não tem futuro. Muitos cientistas estão falando em sair de lá para sempre. O dano à ciência russa é irreparável”.

Seu colega Kupriyanov também acredita que as consequências da guerra para a ciência russa serão bastante negativas, sobretudo para a geração mais nova. “Várias colaborações institucionais foram rompidas por causa das sanções”, diz. “Um exemplo é que a fundação Alexander von Humboldt da Alemanha (que no Brasil colabora com a CAPES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]) não dá mais as bolsas para a Rússia. Eu sou humboltiano, o estágio de pós-doc no instituto Max-Planck com a bolsa CAPES-Humboldt de fato alavancou a minha careira. Infelizmente, os cientistas atuais de lá não vão ter a mesma oportunidade. E esse é apenas um de muitos exemplos”.

Para Campos, guerras, conflitos e coisas relacionadas são sempre negativas. “Mas a questão de influência nas pesquisas não vem do conflito em si na Ucrânia”, diz. “Ela vem das sanções dos Estados Unidos e aliados contra a Rússia. Haverá, com certeza, perdas acadêmicas e científicas para todos os países. Ciência é algo que se constrói, com maior velocidade, em parceria. No entanto, penso que, no médio e longo prazo, as questões de novas colaborações serão reformatadas e adaptadas”.

Diante desse quadro, muitos se perguntam se a ciência deveria vir acima da política. O ecologista de zonas úmidas Christian Dunn, da Universidade de Bangor, Reino Unido, citado no texto da Nature e que trabalha em biogeoquímica de turfeiras com cientistas na Sibéria, diz que não. “O argumento de que a ciência está acima da política pode ser aplicado a qualquer setor – como o esporte, por exemplo”, justifica. Por isso, ele resolveu dar uma pausa em seu trabalho com os colegas russos. 

Vasilevich concorda com o argumento. “Infelizmente, a ciência não pode vir acima da política”, diz. “Eu era um jovem pesquisador na União Soviética. Nunca apoiei a política do Partido Comunista. Fiquei muito grato aos cientistas estrangeiros por suas visitas, contatos e colaboração. Continuarei minha colaboração com os cientistas russos. Também tentarei ajudá-los a encontrar uma nova vida fora do país”.

Para Campos, em um mundo perfeito, idílico, a ciência deveria vir acima da política. “Mas, se prestarmos atenção, todas as ações humanas têm como influenciador maior sua base política e econômica”, diz. “Logo, para o bem ou para o mal, a vida em sociedade, em geral, é ‘movida’ pelas questões que estão na base das ações humanas. A ciência, a cultura, por exemplo, estão inevitavelmente ligadas às esferas políticas e econômicas, de uma forma ou de outra.”

Seja como for, além de interromper colaborações e pesquisas científicas, as sanções impostas à Rússia por causa da guerra terão outras consequências. De acordo com o artigo da Nature, uma delas poderá ser o fortalecimento dos laços científicos dos russos com a China, o terceiro maior colaborador científico do país de Putin entre dezembro de 2020 e novembro de 2021, que não aderiu ao boicote.

Segundo o texto, os projetos conjuntos de pesquisa entre os dois países continuarão inalterados pelas atuais mudanças na geopolítica, catalisando uma tendência de cooperação mais estreita entre eles. “A Rússia já é um dos principais membros da Aliança de Organizações Científicas Internacionais da China, e a Nature relatou anteriormente como Pequim está ajudando a despertar ‘o urso adormecido da ciência russa’”, escreve o autor. “A longo prazo, os tomadores de decisão que ocupam os cérebros dourados da Academia Russa de Ciências podem decidir que seu futuro não está no Ocidente, mas no Oriente”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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