Sitiada, comunidade científica ainda defende "relação respeitosa" com governo

Questão de Fato
2 nov 2021
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Se ainda restasse algum resquício de dúvida sobre o desprezo do governo federal pela ciência, ele acabou no dia 6 de outubro, quando o Ministério da Economia cortou cerca de 90% dos recursos destinados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), principalmente para bolsas e apoio a pesquisas e projetos já aprovados pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Como era de se esperar, a decisão gerou protestos da comunidade científica e de seus representantes organizados, como, por exemplo, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

Isso não tem impedido, no entanto, que representantes do governo que nega a ciência sejam recebidos nos fóruns e reuniões dessas entidades, como o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, que discursou na reunião anual da SBPC, e seu secretário de Pesquisa e Formação Científica, Marcelo Morales, que recentemente foi eleito membro da ABC. As entidades alegam, por sua vez, que as relações são apenas institucionais, em consideração aos cargos que eles ocupam, e não significam apoio a suas políticas.

Os recursos cortados a mando do Ministério da Economia estavam previstos no Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) 16/2021. Na véspera de sua aprovação, no entanto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, enviou ofício à Comissão Mista do Orçamento solicitando o corte de R$ 690 milhões já previstos para projetos científicos apoiados pelo MCTI, deixando apenas R$ 55 milhões para tais projetos, uma redução da ordem de 90%. Em nota enviada à Revista Questão de Ciência, o Ministério da Economia alega “que essa proposta de alteração”, ou seja, o corte, “ocorreu para cumprir decisão governamental quanto à necessidade de remanejar recursos, decisão essa que foi referendada pela Junta de Execução Orçamentária (JEO)”.

 

 

Colapso

Nefasto para ciência no Brasil. É com essas palavras que o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, classifica o corte de recursos determinado pelo ministro da Economia. “Ele impede a atualização de laboratórios, de equipamentos, a aquisição de insumos, compra de bibliografia, bolsas de iniciação científica e de auxílio técnico a pesquisa, início de novas pesquisas, continuidade de outras”, acrescenta. “Isso numa época em que a ciência é o fator decisivo, o mais importante que existe, para o desenvolvimento econômico, além de estarmos precisando, nesse momento, lidar tanto com o final da COVID-19 – esperamos que seja o final – quanto com suas consequências humanas e sociais”.

Ribeiro chama a atenção para outro aspecto estranho do corte. Para ele, além de no mérito ser errado, na forma foi algo talvez inédito. “O ministro da Economia mandar, poucas horas antes da votação, uma carta, que não passou pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações, e não sabemos sequer se passou pela Casa Civil, mudando totalmente o teor de um projeto de lei, é uma coisa inaudita no Brasil”, critica.

Para o glaciólogo Jefferson Cardia Simões, vice-pró-reitor de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), esse corte é “um absurdo”, contraproducente e aumenta a crise no setor de ciência e tecnologia (C&T) iniciada em 2015. Entre suas consequências imediatas, ele cita a redução generalizada de pesquisas laboratoriais, aumento da diáspora de cérebros e abandono de carreira pelos jovens doutores. “Só no INCT [Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia] que coordeno (o da Criosfera) temos 15 doutores desempregados”, revela.

Simões alerta ainda que o sistema de C&T brasileiro está a ponto de colapso, pois neste governo não foi lançado nenhum edital substancial. “E agora que teríamos o Universal (que daria pelo menos um alento por 18 meses), vai tudo por água abaixo”, lamenta. “Assim, o Edital Universal 2021 está ameaçado e corre o risco de não ser honrado. A continuidade do programa INCTs [centros de pesquisa ligados ao MCTI] está ameaçada. Os 122 INCTs seriam contemplados com recursos que sumiram com a decisão recente do Ministério da Economia”.

No entender do físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP) e um dos vice-presidentes da SBPC, o corte é “um ataque frontal ao futuro do país, pois na sociedade de conhecimento científico, qualquer uma sem ele fica fadada à pré-história, ao subdesenvolvimento”. “E é este o caminho para o qual o atual governo está levando a sociedade brasileira”, diz. “Cabe a ela, realmente, reagir e colocar, claramente, que nós queremos ter um futuro baseado na ciência, de desenvolvimento econômico sustentável, que só é possível com investimentos maciços em ciência, tecnologia e inovação”.

O também físico Ennio Candotti, que foi presidente da SBPC por quatro mandatos (1989-1991, 1991-1993, 2003-2005, 2005-2007), dá como exemplo de consequências do corte o prejuízo para o desenvolvimento de vacinas. “Cortar recursos é isso: impedir que se crie um sistema de saúde e imunização soberano, capaz de produzir as vacinas que precisamos, sem ter que comprá-las no mercado paralelo, dominado por poucas farmacêuticas, que se apropriaram das técnicas e princípios que a comunidade cientifica internacional (e sem direitos de propriedade abusivos) desenvolveu ao longo de séculos”, diz. “Se o mercado fornece, para que desenvolver aqui? A questão central é: Direitos Humanos são mais importantes do que os direitos de propriedade? Se admitirmos que estes últimos prevalecem, não podemos nos queixar dos cortes”.

Para o biólogo e mestre em Farmacologia João Batista Calixto, diretor do Centro de Inovação e Ensaios Pré-clínicos (CIEnP), as consequências desse “corte brutal e sem precedente dos recursos” para apoio a ciência, tecnologia e inovação serão desastrosas e, “com toda a certeza”, terão efeitos drásticos para o futuro do Brasil como nação independente. Financiado pelos ministérios da Saúde e da CTI e pelo governo do estado de Santa Catarina, o CIEnP foi criado para atuar e contribuir para reverter o atual cenário da indústria farmacêutica nacional e inserir o Brasil dentre os países capazes de desenvolver e, quem sabe, exportar medicamentos em um futuro não muito distante.

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Segundo Calixto, o país está perdendo os melhores recursos humanos formados no Brasil com esforços de décadas, que consumiram muito trabalho e dedicação da comunidade cientifica e recursos financeiros substanciais pagos pela sociedade brasileira. “Além disso, projetos de pesquisa e de inovação tecnológica estratégicos para o país nas mais variadas áreas serão interrompidos”, lembra. “Os prejuízos de ordem econômica e estratégicos para o desenvolvimento tecnológico do país são incalculáveis. Somente o futuro irá nos mostrar”.

Ele alerta que os cortes de recursos para a ciências irá impactar negativamente o crescimento do PIB brasileiro por décadas, e aumentará ainda mais a dependência do país por importação de produtos de base tecnológica, que serão pagos com a exportação de commodities do agronegócio e de recursos naturais, como minérios e petróleo, por exemplo. “As consequências dessa situação nós conhecemos muito bem”, diz.  “Aumento do desemprego, baixos salários e, pior, destruição dos nossos recursos naturais principalmente das nossas florestas. Ou seja, iremos caminhar na contramão dos países industrializados”.

 

 

Ministro imperador

No Brasil de hoje pode não haver dinheiro para financiar bolsas e pesquisas e o desenvolvimento científico do país, mas para estudos como o da nitazoxanida (o vermífugo defendido pelo ministro Marcos Pontes, cujo estudo recebeu verbas consideráveis, sem que houvesse abertura de edital) e para ele viajar para Dubai, não faltam recursos.

Para o físico Leandro Tessler, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o estudo e a viagem não têm nenhuma importância para a ciência brasileira.O MCTI está funcionando não de forma republicana, mas como no império, quando, para receber financiamento para pesquisa (ou cultura), era preciso ser amigo do imperador”, compara.Não vi nenhuma manifestação de nossas entidades representativas, mas elas deveriam tomar uma atitude dura em relação aos desmandos do governo em políticas para a pesquisa científica”.

Candotti é mais incisivo em suas críticas. “Marcos Pontes é uma caricatura de astronauta, e faz de conta que é ministro e distribui agrados e lembranças de pouca ‘gravidade’”, afirma. Quanto a Morales, ele elabora uma analogia. “Lembro que certa vez Giuseppe Occhialini, físico ilustre e mestre, me disse: para fazer 'carreira' na física você deve ser um bom picciotto d'onore  (denominação na máfia do mensageiro de confiança que leva os recados)”, conta.

Segundo Candotti, Occhialini teria continuado, dizendo a ele: “Você nunca será um bom Picciotto d'onore”. “Depois, o mestre arrematou: ‘Eu progredi obedecendo o compromisso  de confiança’ (era mentira, ele nunca obedeceu)”, conta o ex-presidente da SBPC. “Na comunidade cientifica, mais do que o projeto político que um de seus membros defende, se preza a obediência a um pacto silencioso de lealdade aos valores, hierarquias, famílias.”

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Ribeiro, por sua vez, diz que não sabe se antes de sua a gestão houve manifestação da SBPC sobre o estudo do vermífugo. “De um modo geral, nós temos nos oposto a todas as ideias fantasiosas de tratamento, como hidroxicloroquina, como flutamida”, garante. “Temos pedido a responsabilização de todos os envolvidos nisso, mas não posso falar no caso desse vermífugo mencionado”.

Quanto à viagem do ministro a Dubai, acompanhando a comitiva de Jair Bolsonaro, Ribeiro diz que a SBPC não se manifesta. “Eu não tenho como responder às questões que deveriam ser colocadas ao próprio MCTI”, justifica. “Nós não temos elementos pra avaliar esses pontos, creio que o próprio ministério deve ser questionado”.

 

Sem “reverência”

Sobre as relações com Pontes e Morales, Ribeiro diz que a SBPC os tem tratado “com urbanidade, com o respeito que é devido institucionalmente às suas posições” e tem mantido o diálogo com eles, como eles têm mantido a entidade. “Então, não há nada de estranho nisso”, diz. “Eu creio que o termo reverência é um pouco excessivo e pagar ódio com amor, também”, diz. “Respeito é uma coisa, submissão é outra. Nós não temos mostrado submissão a ninguém, a não ser à causa das causas magnas, que são a ciência, a educação, a saúde, o meio ambiente, a cultura, a tecnologia e inclusão social, que são o que eu chamo círculo virtuoso da nossa tarefa”.

No caso do convite ao ministro para discursar na abertura da Reunião Anual da SBPC, Ribeiro diz que é “absolutamente habitual” convidar as pessoas que ocupam posições de destaque nos ministérios da Ciência e Tecnologia Inovações e da Educação. “Todos os ministros são sempre convidados e eu já adianto que no ano que vem, em 2022, quando da reunião anual em Brasília, nós convidaremos todos os candidatos à Presidência da República a se manifestarem sobre suas propostas para a ciência”, informa.

“Estarão convidados eles ou seus representantes, como tem acontecido no passado. Isso não tem nada a ver com homenagem, isso tem a ver com espírito republicano. A SBPC não é partidária, é um órgão que defende a ciência no Brasil e o espírito republicano exige que, de nossa parte, mantenhamos firmeza, serenidade e respeito em relação àqueles com quem conversamos”.

Evanildo da Silveira é jornalista

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