Reducionismo cultural, a nova onda do pós-moderno

Artigo
5 out 2022
Dracula

 

David Bloor, sociólogo escocês, em uma abordagem sobre a sociologia da ciência, reuniu nos anos 1970 uma série de ideias que ficou conhecida como o “Programa Forte da sociologia da ciência”. Grosso modo, o Programa Forte defende que o conhecimento científico (inclusive das denominadas ciências duras, como a física, por exemplo) se firma através de uma complexa rede onde se misturam, com igual importância, a política, a sociologia e a ciência. No livro “Conhecimento e imaginário social”, Bloor afirma que a sociologia da ciência pode investigar e explicar a natureza do conhecimento científico.

Posição que, como ironizou o filósofo Larry Laudan em seu livro “Science and Relativism” (“Ciência e Relativismo”), poderia ser resumida como “ceticismo a respeito de tudo, com exceção das ciências sociais”. O programa intelectual pós-moderno, caracterizado por uma desconfiança ácida, às vezes cínica, em relação às chamadas “grandes narrativas” que buscam explicar o mundo, acabou gerando sua própria grande narrativa, apenas substituindo o velho reducionismo físico-biológico por um novo reducionismo sociologizante.

Se o primeiro pressupõe que todos os fenômenos, inclusive os sociais, não passavam de questões de átomos e genes, o segundo presume que todos os fenômenos, incluindo átomos e genes, não passam de questões sociais.

O exagero na apropriação de conceitos das ciências duras pela retórica de certos luminares da corrente pós-moderna  fez com que os físicos Alan Sokal e Jean Bricmont publicassem o livro Fashionable Nonsense (no Brasil, foi publicado com o título “Imposturas Intelectuais”) onde criticavam algumas pérolas pós-modernas, como a relação feita por Lacan[i] entre o pênis ereto e a raiz quadrada de -1. O livro teve origem em um artigo de 1996 intitulado Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity (Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica), publicado na revista Social Text.

O texto de Sokal era uma “pegadinha” com os editores da revista, porque não fazia nenhum sentido. Nas palavras de Gary Kamiya, transcritas nas páginas 70-71 do livro O Capelão do Diabo, de Richard Dawkins: “armado com as senhas não tão secretas (“hermenêutica”, “transgressivo”, “lacaniano”, “hegemonia”, para mencionar apenas algumas), escreveria um artigo completamente espúrio, o submeteria a um periódico da moda e teria seu artigo aceito [...] O texto de Sokal emprega todos os termos esperados. [...] E ele vem a ser uma total e completa embromação”.

A narrativa pós-moderna no formato do Programa Forte caiu em desuso nos dias de hoje, conforme pontua Bruno Latour:

“O erro teria sido acreditar que tínhamos também a explicação social dos fatos científicos. Não tínhamos, embora seja verdade que, no início tentamos (...) mas felizmente (sim, felizmente!) vimos, uma após a outra, que as caixas-pretas da ciência continuavam fechadas e que eram nossas ferramentas que jaziam no chão da oficina, desarticuladas e quebradas. Simplesmente, a crítica era inútil contra objetos de alguma solidez. Pode-se tentar o jogo projetivo contra óvnis, ou divindades exóticas, mas não tente isso contra a gravidade, ou neurotransmissores”. [Latour, ‘Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern’, Critical Inquiry 30 (Winter 2004)].

Apesar da declaração de Latour romper, de certa maneira, com a falsa equivalência entre a retórica e o fato científico estabelecida pelo Programa Forte da sociologia, nos dias de hoje parece que o reducionismo sociologista foi apenas substituído por um reducionismo culturalista: abandonou-se a utilização nonsense de termos de exatas, em contextos inapropriados, e passou-se para um discurso que coloca a narrativa identitária, o fato cultural, num patamar superior ao do fato científico – mesmo quando o que está em jogo é a busca da melhor descrição empírica possível da realidade física.  

Não se trata aqui de uma hierarquização da importância dos assuntos tratados, mas no exagero de uma transdisciplinaridade onde nada pode ser criticado, tudo pode estar em todo lugar: a lógica particular que justifica a reivindicação de que o processo científico de investigação, hipótese, teste e crítica é a melhor forma de aproximar a realidade física é ignorada e, com isso, os resultados desse processo são tratados como meras opiniões ou dados culturais.

Como escrevi em artigo para a revista ComCiência: “Seria, por exemplo, aceitável a introdução da astrologia, do terraplanismo ou do ET de Varginha em uma disciplina na universidade? É possível que a resposta seja sim, desde que os temas apareçam no contexto de estudos socioantropológicos, históricos ou psicológicos. Por outro lado, não caberia uma disciplina em um curso de física ou geografia que ensinasse esses assuntos como fatos reconhecidos pela comunidade científica, desinformando abertamente o aluno”.

Em julho de 2021, professores da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, publicaram uma carta no New Zealand Listener intitulada “Em defesa da ciência”. Na carta, os sete professores se opunham a um parecer técnico do Ministério da Educação que recomendava a paridade entre a Matauranga Maori, o conhecimento tradicional Maori, e os outros corpos de conhecimento credenciados pelo NCEA, o certificado nacional de desenvolvimento educacional.

A carta defende que a ciência é universal, com contribuições de várias partes do mundo, e não uma construção, apenas, da Europa Ocidental. Reconhece a importância do conhecimento indígena, mas termina por dizer que este conhecimento fica muito distante do que é ciência.

O que se seguiu à publicação da carta foi uma campanha de cancelamento dos “sete do Listener”, como ficaram conhecidos os autores da carta. Manifestações de defesa e ataque aos docentes envolveram instituições e cientistas como Richard Dawkins, a Royal Society da Nova Zelândia, a cúpula da universidade de Auckland e o governo neozelandês.

A discussão filosófica sobre o critério de demarcação da ciência é, nesse contexto, irrelevante. Pouco importa se o conhecimento pode ou não ser classificado como ciência para que tenha entrada nas escolas – o corpo de conhecimento de uma instituição de ensino é formado por muitas coisas que vão além da falseabilidade ou reprodutibilidade, só para ficar em algumas características da definição ortodoxa de ciência. Educação Artística é uma disciplina perfeitamente legítima e não é “ciência”.  

Tampouco implica em desrespeito a tradições culturais a investigação de um fato pela ciência. A ciência é o melhor método para descobrir se uma hipótese sobre o mundo físico é verdadeira ou falsa. Provavelmente, Isaac Newton não se importaria se disséssemos para ele que a cura da peste não se dá pela administração de uma combinação de “sapo em pó, que ficou suspenso pelas pernas em uma chaminé por três dias, que vomitou terra com vários insetos sobre um prato de cera amarela, e logo depois morreu”. Newton escreveu isso em um manuscrito de 1667.

Em partes da Europa e da América do Norte, até poucos séculos atrás, o conhecimento tradicional sobre surtos de tuberculose requeria que os mortos fossem desenterrados e tivessem estacas cravadas no peito. Ninguém lamenta que a teoria científica dos germes e a epidemiologia tenham dado fim a esta tradição específica.

A receita de Isaac Newton para curar a peste poderia constar no conteúdo de uma disciplina de história, por exemplo. Mas, obviamente, seria um absurdo ensinar essa poção mágica em escolas de Medicina como algo a ser receitado para pessoas doentes. Sem radicalismos: basta saber apenas em qual escaninho colocar cada assunto.

Vale dizer, porém, que a carta dos professores de Auckland toca em um ponto importante, que é a unicidade da ciência. Apelar para um reducionismo cultural rasteiro a fim de negar a universalidade do processo científico de investigação é uma das estratégias utilizadas para propagar picaretagem. Quando estudos clínicos de boa qualidade mostram que homeopatia não vai além do que um placebo ou que não tem nenhuma magia curativa emanando das mãos de um aplicador de reiki, uma turba barulhenta sempre aparece para resmungar que essas práticas “não podem ser estudadas pela ciência ocidental e que têm que ser interpretadas segunda outras epistemes próprias”.

Essa postura do intelectual que se imagina sofisticado, com ações coordenadas de cancelamento em redes sociais, normalmente com uma avaliação rasa do assunto abordado e ataques ad hominem, é frequentemente levada à frente por grupos que se dizem pró-ciência. O reducionismo cultural pode até ser, às vezes, bem-intencionado, mas não deixa de ser uma forma de negacionismo. E o conhecimento tradicional é muito claro sobre onde termina o caminho que se faz pavimentar de boas intenções.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

 

NOTA

[i] Assim, calculando-se a significação segundo o método algébrico que utilizamos aqui, a saber:

S (significante) = s (o enunciado)

s (significado)

Com S = (–1), tem-se: s = √–1

 

[O pênis erétil] é igualável a √–1 da significação produzida acima, do gozo que ele restitui pelo coeficiente de seu enunciado à função de falta de significante (–1).

 

Dawkins, Richard. "O Capelão do Diabo" (p. 67 e 68). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

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