O papel da moralidade na luta contra a COVID-19

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28 jun 2023
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VIRUS

 

A eclosão da pandemia de COVID-19 no início de 2020 exigiu uma mudança abrupta e radical de hábitos da população mundial. De uma hora para outra, atitudes como distanciamento social, isolamento físico, reforço da higiene pessoal, da etiqueta respiratória e uso correto de máscaras precisaram ser incorporadas ao comportamento do dia a dia, na tentativa de conter a disseminação da doença, então sem cura ou vacina, e com mecanismos de transmissão ainda mal compreendidos.

O apoio e adesão a estas medidas - sejam na forma de recomendações ou obrigatórias -, no entanto, variou entre pessoas e países, podendo explicar em parte o sucesso ou fracasso de cada um no enfrentamento da maior crise sanitária no planeta no último século. E um dos fatores que pesaram nisso foram conceitos associados à moralidade, mostra artigo publicado recentemente no periódico Group Processes & Intergroup Relations.

Tendo como primeiro autor o brasileiro Paulo Sérgio Boggio, psicólogo e diretor do Laboratório de Neurociências Cognitiva e Social da Universidade Mackenzie, em São Paulo, o artigo, na edição especial dedicada a moralidade e ética no comportamento humano da revista científica, abrange três estudos que analisaram a influência de noções ligadas à moralidade no apoio e na prática das medidas recomendadas por especialistas nos primeiros meses da pandemia.

Para isso, os cientistas usaram informações de quase 47 mil pessoas de 68 países que participaram das pesquisas da Colaboração Internacional para Psicologia Social e Moral da COVID-19 (ICSMP, na sigla em inglês) entre abril e maio de 2020, além de dados de mobilidade do Google compilados na mesma época e de partes da sexta etapa da World Values Survey (Pesquisa Mundial de Valores, em tradução livre), iniciativa internacional voltada para o estudo dos valores sociais, políticos, econômicos, religiosos e culturais de populações espalhadas pelo planeta, coletados entre 2010 e 2014.

 

Dimensões da moralidade

No primeiro dos estudos, os pesquisadores buscaram determinar o impacto de três dimensões de moralidade - identidade moral, moralidade como cooperação e círculos morais - no cumprimento das recomendações de distanciamento social, reforço da higiene e apoio a medidas de isolamento físico, como fechamento de escolas e negócios não essenciais. Sua hipótese era de que quanto maior a identidade moral - isto é, a intensidade com que a pessoa considera que agir de modo ético e moral é parte de sua identidade, ou como este compromisso moral reflete sua identidade -, o quanto mais a pessoa associa cooperar para a solução dos problemas da sociedade a uma atitude moral, e o quanto considera necessário agir de maneira moral e ética, maior seu apoio e adoção das medidas de prevenção da COVID-19.

No caso da identidade moral, os cientistas usaram um questionário online com dez itens que também buscava separar duas dimensões desta noção, internalização e simbolização. A internalização diz respeito a quão essenciais o indivíduo considera virtudes morais como compaixão, justiça, generosidade, honestidade e cuidado com o próximo para o conceito que tem de si mesmo. Já a simbolização se refere a quão importante é para o indivíduo expressar estas virtudes. Os pesquisadores esperavam que a internalização fosse um preditor mais forte da adesão e apoio às medidas de prevenção da COVID-19 do que a simbolização. Desta forma, montaram o questionário mais em torno de ações prescritivas (por exemplo, "estou lavando as mãos com mais cuidado que o normal") do que negativas (por exemplo, "não estou fazendo festas").

Já para a moralidade como cooperação, os pesquisadores focaram em sete fatores - família, grupo, reciprocidade, heroísmo, deferência, justiça e adequação - num questionário de também sete itens. Nele, os participantes responderam à questão de o quanto consideram importantes sete considerações na hora de decidir se algo que alguém fez era certo ou errado: se a pessoa ajudou ou não algum membro de sua família (família); se ela agiu com conjunto com a comunidade (grupo); se cumpriu o que prometeu (reciprocidade); se demonstrou coragem frente às adversidades (heroísmo); se obedeceu àqueles com autoridade (deferência); se guardou a melhor parte para si (justiça); ou se ficou com algo que não era dela (adequação). Assim como no questionário anterior, as respostas eram dadas numa escala de 11 pontos que ia de zero ("discordo totalmente") a dez ("concordo totalmente").

Fechando esta seção da pesquisa, os participantes deram uma medida do tamanho de seu círculo moral, ou seja, as pessoas, entidades ou coisas que se preocupam se estão sendo tratadas de forma correta ou não. A escala de 16 itens ia desde "sua família imediata", passando por "todos seus amigos" ou "todas pessoas de seu país" até "todos animais no Universo, incluindo alienígenas" ou "todas as coisas existentes".

Depois, os participantes julgaram seu comprometimento com as medidas de prevenção da disseminação da COVID-19 em três mensurações de apoio à saúde pública, novamente em uma escala de 11 pontos entre total concordância ou aquiescência e total discordância ou dissensão. A primeira foi uma escala de distanciamento social de quatro itens como "durante da pandemia do coronavírus fiquei em casa o máximo que praticamente possível", seguida de uma sobre o reforço da higiene pessoal com cinco itens, incluindo a já citada questão sobre lavagem de mãos e outra, também com cinco itens, relativa ao apoio às políticas públicas de prevenção, do tipo "durante a pandemia fui a favor do fechamento de escolas e universidades".

Segundo os cientistas, a análise das repostas mostrou que todas estas dimensões de moralidade tiveram impactos positivos significativos na adesão e apoio às medidas de prevenção da COVID-19 logo no início da pandemia, respondendo, em conjunto, por 9,8%, 10,2% e 6,2% das decisões de limitar os contatos sociais, reforçar a higiene pessoal e apoiar as restrições e recomendações de governos e especialistas no período, respectivamente. Separadamente, a internalização da identidade moral foi a que teve força neste processo, seguida da visão da moralidade como cooperação. Já a simbolização da identidade moral teve maior impacto no reforço da higiene pessoal, enquanto uma visão mais universalista do círculo moral foi positivamente associada aos três desfechos, ainda que em menor grau que as outras variáveis.

 

Verificações independentes

Dado que o primeiro estudo foi baseado em atitudes autorrelatadas pelos participantes com relação ao apoio e adesão às medidas de prevenção da COVID-19 no nível pessoal, os pesquisadores decidiram realizar duas verificações independentes dos resultados no que o artigo descreve como estudos 2 e 3. No Estudo 2, procuraram saber se as medidas de moralidade podiam ser correlacionadas a mudanças na mobilidade da população antes e durante o início da pandemia, tendo como referência dados dos Relatórios de Mobilidade da Comunidade na COVID-19 do Google (COVID-19 Community Mobility Reports, no original em inglês).

Estes relatórios periódicos com base no compartilhamento voluntário de informações dos usuários com a empresa mostram tendências de movimentação da população em diferentes tipos de lugares, como comércio e espaços de lazer, supermercados e farmácias, parques, estações de trem e outros transportes, locais de trabalho e residências. Para controlar o possível impacto na mobilidade de medidas restritivas impostas por governos, os autores também computaram um "índice de restrição" calculado sobre informações do Sistema de Rastreamento da Resposta Governamental à COVID-19 da Universidade de Oxford (OxCGRT, na sigla em inglês) para cada um dos 64 países incluídos na análise.

Segundo os cientistas, mais uma vez como esperado, pontuações mais altas nas medições de identidade moral e moralidade como cooperação, e noções mais amplas e universalistas dos círculos morais foram associadas a uma diminuição da mobilidade da população em nível nacional. Correlação que se manteve para a identidade moral e os círculos morais quando os resultados foram controlados pelo índice de restrição de cada país.

Por fim, para verificar a robustez desta relação entre moralidade e mobilidade, o Estudo 3 cruzou dados da sexta etapa da Pesquisa Mundial de Valores com as mesmas informações de mobilidade dos relatórios do Google, e novamente controlando com o índice de restrição baseado nas informações do sistema de rastreamento de medidas restritivas governamentais da Universidade de Oxford. Para tanto, eles pinçaram três das variáveis do levantamento que mais refletem os conceitos de moralidade do primeiro estudo - Benevolência, Conformidade e Universalismo - de 52 países cobertos pela pesquisa global sobre valores, traduzidas como concordância a questões como "é importante para esta pessoa fazer algo pelo bem da sociedade" (benevolência), "é importante para esta pessoa se comportar adequadamente" (conformidade), e "é importante para esta pessoa cuidar do meio ambiente, da natureza e da preservação de recursos naturais" (universalismo).

E mais uma vez, relatam os pesquisadores, indicadores mais altos de Benevolência, Conformidade e Universalismo foram associados a uma redução da mobilidade da população em nível nacional, em um sinal de maior respeito e adesão às medidas de contenção da COVID-19. Correlação que se manteve significativa para Benevolência e Universalismo mesmo quando os resultados foram controlados pelo índice de restrição, e se tornou marginal e mais fraca para Conformidade.

 

A moralidade como estratégia

Embora reconheçam que os tamanhos dos efeitos da moralidade sobre o apoio e adesão às medidas de combate à disseminação da COVID-19 encontrados nos estudos tenham sido "modestos", os pesquisadores argumentam que no contexto de uma pandemia que atinge e mata milhões de pessoas, mesmo pequenos ganhos podem ter grande impacto e salvar milhares vidas.

"Considerando a forma exponencial que um vírus se espalha, parte de seu controle depende de diferentes ações governamentais, com mudanças comportamentais acontecendo de maneira rápida e organizada", escrevem na conclusão do artigo. "Nenhum intervenção não farmacêutica funciona como uma bala de prata. Será a soma das diferentes mudanças implementadas que terão o efeito mais significativo. Em outras palavras, o resultado de diferentes mudanças comportamentais pode ser mais que a simples soma de seus efeitos porque quando um crescimento (ou queda) exponencial está em jogo, as curvas são geométricas, e não lineares. Numa pandemia que está matando milhões de pessoas no mundo inteiro, mesmo um pequeno efeito tem o potencial de salvar as vidas de milhares de pessoas".

Diante disso, os cientistas sugerem que em futuras crises sanitárias governos e especialistas busquem aumentar o apoio e adesão às medidas de contenção da pandemia fomentando e apelando para as noções de moralidade da população, especialmente aquelas voltadas para a cooperação, benevolência e universalismo. E uma das maneiras mais claras de fazer isso é liderar pelo bom exemplo, no que presidentes e líderes políticos de muitos países que fracassaram no combate à COVID-19 - como Jair Bolsonaro no Brasil, e Donald Trump nos EUA - falharam miseravelmente, reforçando a falsa impressão de que vivemos uma era de decadência moral.

"Pode-se promover ações pró-sociais com a mera presença de indivíduos reconhecidos pela sua alta identidade moral", concluem os pesquisadores. "Lutar contra uma pandemia global requer sacrifícios individuais para o bem da comunidade. Desta forma, engajar comportamentos que lidam com uma pandemia pode ser entendido como um compromisso moral na sua dimensão cooperativa. Nosso estudo pode dar base para que líderes, instituições e a mídia considerem galvanizar o apoio popular às políticas públicas que limitem a disseminação do vírus. por exemplo, líderes e comunicadores podem avaliar apelas à identidade moral de maneira mais explícita nas suas mensagens, e a comunicação pública se focar mais nos indivíduos mais dispostos em apoiar as políticas para a COVID-19. Este apoio pode ter importantes efeitos subsequentes em outros integrantes do público ao aumentar a percepção de que 'é mais fácil ser e se tornar virtuoso entre outras pessoas que se importam com seu bem-estar e caráter, que te encorajam a fazer a coisa certa'".

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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