Muito além do Efeito Dunning-Kruger

Artigo
18 out 2023
Autor

 

xologravura

 

Em tempos de redes sociais, parece que todo mundo tem uma opinião ou uma "teoria" sobre qualquer assunto. Pandemia de um novo coronavírus? Tome aqui meu diagnóstico, baseado em um texto e dois vídeos sobre epidemiologia e virologia que acabei de ver. Conflito no Oriente Médio? Eis aqui minha solução, calcada na leitura de meia dúzia de notícias e análises - muitas vezes de gente que também não faz a mínima ideia do que está falando - e ignorando solenemente séculos de história.

É o "Efeito Dunning-Kruger", identificado pela primeira vez pela dupla de psicólogos sociais americanos David Dunning e Justin Kruger em artigo publicado em 1999. Nele, os dois descrevem a tendência das pessoas em superestimar suas capacidades em determinadas áreas e tarefas, mesmo quando têm pouca ou nenhuma competência nelas. Ou seja, que os incompetentes não têm consciência do tamanho de sua incompetência, como num inverso da modéstia de Sócrates (470 AEC-399 AEC) e seu "Só sei que nada sei".

De lá para cá, diversos outros estudos aprofundaram esta investigação, revelando que o efeito não é exatamente universal, isto é, nem sempre o tolo peca pelo excesso de confiança, e também varia de acordo com tendências culturais e individuais. Estes estudos, porém, também têm suas limitações. A começar que, em geral, baseiam-se em métricas de autoavaliação, em que os participantes respondem se acreditam que foram bem (ou não) na realização das tarefas. E isto abre caminho para diversos vieses, como o da desejabilidade social, a tendência das pessoas em se comportar ou responder questionários do jeito que imaginam que o pesquisador gostaria. Ou a hesitação natural em admitir limitações publicamente, o que pode levá-las a responder a perguntas mesmo sobre assuntos fictícios. E como as pessoas também frequentemente são estimuladas a se ver de um ponto de vista positivo, mais distorções podem aparecer nas autoavaliações.

Além disso, os estudos de efeitos do tipo Dunning-Kruger costumam apresentar níveis de conhecimento e sua relação com excesso ou falta de confiança em escalas comparativas, com os participantes avaliando seu desempenho em comparação com o que acham que tenha sido o desempenho de outros na mesma tarefa. Assim, fica difícil distinguir o que é distorção e superestimação do desempenho pessoal do que é a subestimação da capacidade dos demais. Estas escalas comparativas também são frequentemente relatadas em forma de percentis ou quartis, o que pode camuflar variáveis ao agrupar participantes com diferentes níveis de conhecimento e confiança.

 

Eco de Sócrates

Foi pensando em driblar estas limitações que um grupo de cientistas trabalhando em Portugal adotou uma nova abordagem em um estudo do Efeito Dunning-Kruger. Propondo uma nova métrica que ecoa a máxima socrática - na qual responder incorretamente a itens num questionário, em vez de admitir "não sei", seria um indicativo de excesso de confiança, e avaliando como esta medida varia com o conhecimento mensurado nos questionários -, eles a aplicaram em três grandes levantamentos internacionais sobre o entendimento do público sobre ciência: Eurobarômetro, cobrindo 34 países e territórios europeus; e General Social Survey e American Trends Panel, nos EUA. Esses levantamentos foram realizados ao longo de 30 anos na Europa e EUA, num total de quase 100 mil respondentes.

"Esta métrica indireta de confiança é conceitualmente muito simples, baseia-se em um amplo consenso científico e pode ser aplicada a qualquer questionário de conhecimentos no formato 'verdadeiro'/'falso'/'não sei': quando dadas estas três opções, um indivíduo com cognição perfeita [em que há uma relação linear entre o que a pessoa sabe (conhecimento) com o que ela acha que sabe (confiança)] deve ou responder corretamente ou dizer 'não sei'. Desta forma, se uma resposta incorreta corresponde a situações que o indivíduo acredita que sabe a resposta certa, mas de fato não sabe, ela representa uma medida do excesso de confiança", explicam os cientistas em artigo sobre seu estudo, publicado recentemente na revista Nature Human Behaviour.

Depois, os pesquisadores compararam os resultados a três modelos de resposta - esta "metacognição perfeita", em que conhecimento e confiança caminham juntos; Dunning-Kruger, em que quase não há relação entre estas duas variáveis, que podem aumentar ou diminuir de forma independente; e um terceiro que acrescenta a possibilidade de os participantes estarem "chutando" acertadamente as respostas, o que pode levar a uma superestimação de seu conhecimento individual. Segundo os cientistas, diferentemente do esperado pelo Efeito Dunning-Kruger, a nova métrica revelou que o excesso de confiança não é maior nas pessoas com menos conhecimento, mas nas que apresentaram níveis médios de conhecimento em todos três modelos.

"Os respondentes nos três levantamentos ofereceram um considerável número de respostas incorretas, e elas não foram distribuídas aleatoriamente: à medida que o número de indivíduos que quase nunca responde errado encolhe muito rápido, isso gera uma relação não linear, com respondentes nos dois extremos (com muito baixos ou muito altos níveis de conhecimento) fornecendo proporcionalmente mais respostas 'não sei' e sendo mais propensos a nunca responder incorretamente", relatam no artigo.

Tendência que se manteve mesmo depois de levarem em consideração respondentes "preguiçosos" - que tenham marcado a mesma resposta para todas as questões - e "chutadores", estimando que cerca de 25% deles marcam outra opção que não seja "não sei" mesmo quando de fato não sabem a resposta certa.

"Consistentemente os respondentes identificados como os com menos conhecimento não foram os com maior excesso de confiança. De fato, a calibragem para erros foi marcadamente não linear, atingindo o pico em níveis intermediários de conhecimento nos três levantamentos, apesar deles terem coberto populações diferentes ao longo de três décadas", reforçam.

 

Validação

Diante disso, os pesquisadores partiram para tentar validar sua nova métrica de confiança. Para tanto, fizeram dois testes. No primeiro, elaboraram um novo levantamento que aplicaram em três países com diferentes níveis educacionais gerais da população e exibiram diferentes percentagens de evitar respostas "não sei" nas pesquisas do Eurobarômetro: Portugal, Alemanha e Noruega. Selecionando uma amostra similar e repetindo as perguntas do levantamento original, incluíram uma métrica direta e não comparativa de confiança, na qual pediam aos respondentes para estimar o número de itens que achavam que tinham respondido corretamente. Segundo eles, mais uma vez a confiança cresceu rapidamente e de forma não linear nas faixas de conhecimento intermediário.

Já no segundo teste, usaram dados de um estudo publicado em 2019 que usou uma métrica autoavaliada e não comparativa de confiança, relatando evidências de Efeito Dunning-Krueger no controverso tópico de alimentos geneticamente modificados. De acordo com os pesquisadores, quando plotaram a proporção de respostas incorretas dos participantes deste estudo, eles observaram que ela aumenta rapidamente nas faixas iniciais de conhecimento, com as pessoas nos dois extremos de menor e maior conhecimento voltando a exibir uma tendência maior a responder "não sei" no lugar de dar uma resposta errada.

"Desta forma e apesar das limitações da métrica, verificamos que o efeito é robusto entre países, formatos de levantamentos, tópicos científicos, distribuições do conhecimento e proporção de 'chutadores', e que diferentes estratégias de resposta sozinhas não podem explicar observar o efeito de uma menor confiança nas faixas com menos conhecimento", avaliam. "Tudo junto, isto sugere fortemente que, pelo menos no caso do conhecimento científico, ter algum conhecimento é mais perigoso do que não ter nenhum, no sentido de que as pessoas com menor conhecimento estão de fato conscientes de suas limitações, e são os que têm algum conhecimento os que mais erram".

 

Implicações

Dados os resultados do estudo, os pesquisadores alertam que este fenômeno pode levar a populações que até têm algum conhecimento, mas superestimam em muito o quanto sabem. Preocupados com isso, também analisaram como os níveis de conhecimento e confiança observados se relacionam com as atitudes do público frente à ciência. E o que viram foi novamente que é justamente neste grupo de conhecimento intermediário que estão as visões mais negativas da ciência.

"A partir de nossas análises, muitas das atitudes que podem ser identificadas como negativas parecem ser moduladas por uma combinação de algum conhecimento e confiança, com o excesso de confiança aparecendo nos níveis intermediários de conhecimento e se refletindo em atitude mais negativas frente à ciência tanto em tópicos controversos quanto menos controversos", relatam.

Desta forma, isso também pode ter implicações importantes para a comunicação da ciência e a luta contra a desinformação e as respectivas estratégias e intervenções, destacam os cientistas. Segundo eles, se o Efeito Dunning–Krueger se sustentar, então as intervenções devem ter como alvo os com menos conhecimento e, desta forma, menor consciência de sua ignorância ou incapacidade. Mas, se suas observações se mostrarem o padrão, fornecer informações incompletas, parciais ou simplificadas em excesso pode ser contraproducente, oferecendo uma falsa sensação de conhecimento para o público que o levará confiar em excesso nas suas capacidades, alimentando um ciclo vicioso.

"E, se o menor apoio à ciência vem dos com excesso de confiança, eles também podem ficar mais resistentes a novas informações, especialmente as que contradigam suas certezas, criando outro ciclo negativo de reforço", consideram.

Resistência que pode se manifestar como tendências confirmatórias ou outros vieses cognitivos, que segundo eles pode ser combatida com intervenções como demonstrar às pessoas com excesso de confiança que sua sensação de conhecimento é ilusória e que o importante é compartilhar informações acuradas, ao mesmo tempo que se transmita humildade tanto da parte dos cientistas quanto do público leigo, e sem confrontar valores ou ideologias.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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