Quem tem medo do glifosato?

Dossiê Questão
6 mar 2019
Plantação de soja na Argentina. Wikimedia Commons
Plantação de soja na Argentina. Wikimedia Commons

Um dos gráficos abaixo relaciona a evolução, ao longo do tempo, do número de novos casos  de um tipo de câncer, o linfoma do tipo não-Hodgkin (LNH) com o aumento do uso do produto químico glifosato como herbicida. O outro mostra a evolução do número de suicídios por enforcamento ou estrangulamento nos Estados Unidos, contra o aumento do investimento em pesquisa espacial nos EUA. Dada a recente onda de manchetes ligando glifosato ao LNH, incluindo as referentes a uma indenização milionária obtida por um jardineiro na justiça americana, ano passado, contra um fabricante do herbicida, qual gráfico você acha que representa o quê?

Primeiro gráfico:

Glifosato vs câncer

 

Segundo gráfico:

 

suicídio vs pesquisa espacial

Pois bem,  o gráfico que indica uma correlação clara entre dois fatores é o do suicídio e pesquisa espacial, e pode ser encontrado no site “Spurious correlations” – que reúne, exatamente, exemplos de dados que variam juntos por algum tempo, mesmo sem ter ligação nenhuma entre si. Correlações sugerem, mas não provam,  relação de causa e efeito, mesmo quando as duas curvas caminham juntas. No caso do glifosato e número de casos de LNH, não há nem mesmo uma correlação espúria a ser observada.

O gráfico que mostra o aumento do uso do glifosato é o primeiro (a curva verde é a de casos de câncer, a laranja, a de uso do herbicida). O herbicida vem sendo utilizado de forma crescente desde 1992. O número de casos – e mortes – de linfoma do tipo não-Hodgkin se mantém constante. No entanto, tentativas de estabelecer uma relação de causa e efeito entre esses dois fatores vêm sendo feitas pela mídia, por ativistas e – infelizmente – até por cientistas. Era de se esperar, se essa relação existisse, que o gráfico mostrasse um número crescente e preocupante de casos deste tipo de linfoma à medida que aumentasse o uso do glifosato.

Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso mais bem definido de ligação real entre um contaminante e o câncer, o do tabaco. Câncer de pulmão era raro antes da generalização do hábito de fumar; tornou-se mais comum depois. Mesmo depois de se tornar mais comum entre homens, esse câncer continuou a ser raro entre mulheres, durante todo o tempo em que o tabaco se manteve como hábito masculino. Mas disseminou-se entre as mulheres depois que elas também começaram a fumar.

Quanto ao LNH, sua incidência se manteve constante mesmo enquanto o glifosato se tornava o herbicida mais popular do mundo.

Nem todos os estudos científicos nascem iguais

As manchetes recentes tentando ligar o glifosato ao linfoma derivam de  um trabalho publicado no periódico Mutation Research, cujos autores alegam ter conduzido uma meta-análise conclusiva que estabelece que a exposição ao glifosato aumenta em 41% a chance de desenvolver LNH. Uma meta-análise é, normalmente, o melhor tipo de evidência científica disponível, já que consiste em reunir e avaliar um grande número de trabalhos menores sobre o mesmo tema, fazendo um compilado de resultados, classificando-os em relação ao seu rigor metodológico.

Uma alegação de uma meta-análise que conclui que o glifosato causa câncer, qualquer tipo de câncer, portanto, é, logo à primeira vista, um alerta grave, merecedor de atenção da comunidade científica em geral, da mídia e de governos de todo o mundo. A notícia, de fato, disseminou-se rapidamente.

No entanto, uma meta-análise só consegue ser tão boa quanto os trabalhos que analisa. Como dizem cientistas mais escolados nesse tipo de revisão, “Garbage in, garbage out”, ou, “entra lixo, sai lixo”. Para entender por que o artigo da Mutation Research não traz nenhuma novidade, nem tampouco comprova uma relação entre glifosato e câncer, precisamos entender um pouco melhor o que é essa substância  e o que a ciência diz sobre sua toxicidade e possibilidade de causar câncer em humanos.

O que sabemos sobre o glifosato? 

O glifosato é o herbicida mais utilizado e estudado do mundo. Justamente por ter sido alvo de tantos ataques, diversos estudos já foram feitos para testar se o composto é cancerígeno ou mutagênico. E a resposta é um sonoro NÃO.

O glifosato é um herbicida que bloqueia uma via enzimática – um tipo de atividade celular – que só existe em plantas e bactérias, mas  não em animais, incluindo seres humanos. Em outras palavras, o glifosato atua bloqueando uma função que nenhum animal possui. Quando uma planta é pulverizada com glifosato, as células param de produzir determinados aminoácidos e morrem. Mas humanos não têm essa via enzimática. Não existe nada, nas células humanas, que o herbicida possa afetar: em princípio, o glifosato tem tanta chance de prejudicar células humanas quanto apagar as luzes de uma sala teria de desorientar um cego.

Por ser uma substância que não é metabolizada no organismo humano, sua toxicidade é extremamente baixa. Estudos demonstraram que o glifosato é menos tóxico do que sal de cozinha. Lembrem-se de que estudos sérios avaliam em quais concentrações uma determinada substância é tóxica para animais ou humanos, e não SE a substância é tóxica. Toda substância pode ser tóxica se for utilizada em uma concentração suficientemente alta. Se injetarmos sal de cozinha em uma concentração suficientemente alta em uma pessoa, podemos matá-la. Mas isso não é motivo para parar de consumir sal. A dose faz o veneno, já dizia Paracelso, médico do século 16.

Por exemplo, estima-se que em um copo de leite deve haver 180.000 moléculas de dioxina, uma substância extremamente tóxica e teratogênica, parte do agente laranja, um produto químico lançado pelos EUA sobre as selvas do Vietnã durante a guerra travada no Sudeste Asiático. Ainda hoje, o povo do Vietnã sofre com efeitos tóxicos das dioxinas do agente laranja.

Cento e oitenta mil moléculas num copo de leite! Parece muito, não? Na verdade, essa quantidade é indetectável pelo métodos analíticos atuais, e representa apenas 1 parte por 5 quintilhões. Em concentrações muito baixas, nenhum veneno é danoso. Por outro lado, o excesso de substância inócuas, ou até mesmo que fazem parte da nossa dieta, pode levar à morte. É possível morrer de intoxicação causada pelo consumo excessivo de água.

Crônica

Algumas pessoas manifestam preocupação com a chamada exposição crônica ao glifosato – o efeito cumulativo de pequenas doses ao longo de muitos e muitos anos. Questões de exposição crônica são respondidas por meio de estudos com roedores, e os realizados sobre glifosato e que mostram efeitos cumulativos no longo prazo (também há os que indicam que a substância é inócua) usam doses obscenamente altas.

Os poucos trabalhos em animais que demonstram um mínimo efeito carcinogênico para o glifosato utilizaram concentrações gigantescas do composto, extremamente superiores às que humanos são normalmente expostos. Um desses estudos utilizou uma quantidade de glifosato em roedores que corresponderia a uma aplicação de 100 gramas por dia em humanos. Isso equivale a mais de 30 mil vezes a exposição média de uma pessoa ao glifosato. Seria como tomar meio copo de herbicida puro, diariamente.

No entanto, a IARC (International Agency for Research on Cancer - uma sub-agência da Organização Mundial de Saúde que faz análise de compostos supostamente cancerígenos) utilizou esses poucos estudos para classificar o glifosato como provavelmente cancerígeno, e ignorou os trabalhos que demonstravam o contrário.

A IARC

A polêmica de se o herbicida causaria câncer começou quando a IARC categorizou o glifosato no grupo 2 de seu sistema de classificação, que indica substâncias que “provavelmente podem causar câncer”. Muitas ONGs, ativistas e cientistas utilizam essa categorização como evidência de que o glifosato causa câncer. Isso só mostra um total desconhecimento acerca do que a IARC realmente faz.

A IARC não faz análise de RISCO. Ou seja, não analisa se o uso de uma substância pode apresentar um risco à saúde de quem a consome. O que o órgão faz é uma análise PERIGO. E qual a diferença entre perigo e risco?

Perigo é qualquer comportamento ou substância que tem potencial de causar dano. Atravessar uma rua, qualquer rua, é um perigo, por exemplo; mas o risco é maior se atravessamos uma rua movimentada. Uma placa que indica a presença de tubarões no mar, próximos à praia, indica um perigo. Mas só correremos risco se formos inconsequentes o suficiente para entrar no mar ali. Risco, portanto, leva em conta tanto perigo quanto exposição. A IARC aponta apenas o perigo. Não calcula o risco.

Análise de risco pressupõe exposição. E essa exposição pode ser avaliada em números e probabilidade. Quanto maior a exposição, maior o risco. Voltando aos tubarões, a IARC não avalia quantos tubarões tem na água, se a água é rasa, se os tubarões estão famintos ou bem alimentados, se há obstáculos para que os tubarões cheguem perto dos banhistas. A IARC apenas aponta que “há tubarões ali”. Não faz nenhum tipo de cálculo da probabilidade de você ser devorado por um tubarão caso entre no mar.

Assim, se um único trabalho demonstrou que quantidades absurdas de uma determinada substância em animais parecem relacionadas ao surgimento de tumores nestes animais, essa substância vai para a lista da IARC. É por isso que encontramos, no mesmo grupo onde está classificado o glifosato - grupo 2, de substâncias que podem causar câncer - o café, carne vermelha, frituras, trabalho noturno e trabalhar como cabeleireiro.

No grupo 1A, onde estão agrupadas as substâncias que segundo a IARC, certamente causam câncer, encontramos o tabaco, bebidas alcóolicas, luz solar. E mesmo dentro deste grupo, a agência não faz análise de dosagem. Ou seja, para a IARC, cigarro, mortadela e cachaça são, em termos de perigo de câncer, exatamente a mesma coisa. De aproximadamente mil substâncias analisadas pela IARC em toda a sua existência, apenas UMA foi classificada como “provavelmente não carcinogênica para humanos”. E mesmo o glifosato sendo classificado como menos “cancerígeno” do que salsicha e cerveja, ele continua sendo alvo de ONGs e ativistas que insistem em condená-lo, mesmo contra e melhor evidência científica. Curiosamente, não vemos nenhum tipo de ação contra os fabricantes de salsicha ou cerveja.

Mas qual o risco real do  glifosato?

As agências regulatórias, como a FDA nos Estados Unidos ou a Anvisa no Brasil, diferentemente da IARC, fazem a análise de risco. Calculam quantidades e probabilidades, de acordo com a dosagem e a exposição.

Todas as agências regulatórias que avaliaram o risco de o glifosato causar câncer concluíram que este risco não existe, e que a substância é segura. Relatórios nesse sentido foram emitidos, por exemplo, pelo Instituto Federal de Avaliação de Risco da Alemanha, agindo em nome da Comissão Europeia e da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar; FAO e OMS (ambas agências da ONU); Agência de Proteção Ambiental (EPA), dos Estados Unidos; e a já citada Anvisa.

A Organização Mundial da Saúde, em 2016, fez um painel conjunto com a FAO (Organização para Alimentação e Agricultura) e concluiu que o glifosato não é cancerígeno ou genotóxico. A OMS também mantém uma página de Perguntas e Respostas para esclarecer exatamente o que a IARC faz, e a diferença entre análise de perigo e análise de risco. Nesta página, a OMS deixa claro que a IARC desenvolve um trabalho preliminar apenas.

Em setembro de 2016, a EPA americana publicou um relatório detalhado sobre a possível relação entre glifosato e câncer e concluiu que

não existe embasamento para a “evidência sugestiva de potencial carcinogênico” alegada pela IARC para classificar o glifosato, “incluindo o fato de que até mesmo trabalhos pequenos e sem relevância estatística que alegavam demonstrar essa relação foram negados por trabalhos de qualidade superior. A melhor evidência indica que a classificação deveria ser “provavelmente não carcinogênico para humanos”, nas doses relevantes para a avaliação de risco do glifosato.

Três painéis da própria OMS reavaliaram o segurança do glifosato e concluíram que não há evidências de relação entre glifosato e câncer. O maior e mais completo estudo epidemiológico analisando uma possível relação entre a exposição ao glifosato em mais de 45 mil trabalhadores rurais, que manuseavam glifosato desde 1990, concluiu que “não existe associação entre a exposição ao glifosato e o surgimento de tumores sólidos ou linfomas malignos”.

A Anvisa acaba de liberar sua avaliação de risco sobre o glifosato, na qual conclui que “o glifosato não apresenta características mutagênicas, teratogênicas e carcinogênicas, não é desregulador endócrino e não é tóxico para a reprodução”. A Anvisa também aponta que no Brasil, os casos de intoxicação aguda por glifosato, em sua maioria sem sequelas, ocorreram com trabalhadores rurais de nível educacional muito baixo, que provavelmente não fizeram o uso correto de equipamentos de segurança e não seguiram as instruções de uso. A agência chama a atenção para a necessidade de melhor treinamento e regulamentação do uso no campo.

Resumindo, TODAS as agências regulatórias que avaliaram o composto concluíram que é seguro, e não é carcinogênico. A única agência a concluir o oposto foi a IARC, justamente a agência que não faz análise de risco e que classificou todos os produtos analisados desde sua criação em 1965 – menos UM – como provavelmente cancerígenos para humanos. E mesmo para a IARC, o glifosato é tão cancerígeno quanto passar oito horas por dia num salão de cabeleireiro.

E a nova meta-análise?

A nova meta-análise, que gerou a mais recente tempestade midiática em torno do tema, não traz nenhum resultado novo. Também não foi bem conduzida. Uma boa meta-análise consiste em agrupar trabalhos feitos com metodologias similares, para estabelecer uma análise estatística adequada que, ao agregar todos os resultados de todo os trabalhos avaliados, apresente um resultado confiável, e traduza, em um único artigo, a melhor conclusão que se pode tirar a partir dos dados acumulados sobre um determinado assunto.

No caso de meta-análises de risco, como é o caso aqui, o resultado deveria apresentar uma média de  risco relativo de exposição ao glifosato e incidência de LNH. O resultado apresentado pelo trabalho da Mutation Research indica que existe um risco relativo de 41% de desenvolver LNH em pessoas expostas ao glifosato, em comparação a pessoas que nunca foram expostas. Esse valor causou um furor na mídia que, por ignorância ou má-fé, preferiu não explicar a diferença entre risco relativo e risco absoluto.

Risco absoluto é o risco real de algo acontecer. Por exemplo, a chance de o impacto de um meteorito causar a morte de um indivíduo qualquer, no período de um ano, é de 1 em 75 milhões (The Economist, 2013). Se, por algum motivo, descobríssemos que pessoas ruivas têm um risco relativo de morte por asteroide 100%  maior, em comparação com a população em geral, isso significaria que, para os ruivos, a chance de levar um meteorito na cabeça seria de  1 em 37,5 milhões ao ano. Não nos parece que, mesmo com esse acréscimo de 100% no risco relativo, exista motivo para que a população da Irlanda se esconda debaixo da mesa, certo? Isso porque o risco inicial já é muito baixo.

O valor de 41% foi mal interpretado pelo público – e pelos veículos de comunicação - como se a exposição ao herbicida aumentasse em 41% o risco de desenvolver LNH, para qualquer pessoa. Na verdade, o risco de desenvolver LNH já é bastante baixo, em valores absolutos. Estima-se que 20 novos casos de LNH sejam diagnosticados nos EUA por 100 mil pessoas em um ano. O risco relativo de 41% aumentaria esse número para 28 novos casos por 100 mil pessoas por ano. E isso, se o cálculo que produziu esses 41% tivesse bom embasamento científico. O que não é o caso.

O trabalho avaliou apenas seis artigos, sendo que cinco foram estudos de caso e apenas um foi um trabalho epidemiológico. Deste último, apenas uma parte dos dados foi levada em conta, justamente os dados de maior exposição ao glifosato.

Lembre-se de que meta-análises bem feitas requerem algum tipo de uniformidade metodológica entre os estudos que as compõem; do contrário, é como comparar laranjas e abacaxis. Um estudo epidemiológico difere muito, em concepção, confiabilidade e execução, de um estudo de caso. Estudos de caso são menores, feitos com um número pequeno de indivíduos (o que os torna menos confiáveis) e são retroativos: dado um resultado conhecido, buscam-se possíveis causas e antecedentes.

Confusão e mais confusão

Em outras palavras, um estudo de caso que pretenda avaliar se glifosato causa LNH vai buscar pacientes já diagnosticados com LNH no hospital, e procura, através de questionários, estabelecer se esses pacientes foram expostos ao glifosato. Os cinco estudos de caso incluídos na meta-análise fizeram exatamente isso, mas com metodologias diferentes. Três trabalhos usaram um questionário que perguntava se aquele paciente já havia sido exposto ao glifosato alguma vez na vida, coletando simplesmente respostas de SIM ou NÃO. Outro buscava aferir durante quantos dias por ano o paciente teria sido exposto, e conseguiu reunir pacientes que julgavam ter sido expostos por mais de 10 dias ao ano.  E o último usou pacientes que reportaram ter sido expostos ao glifosato, em média, mais do que dois dias por ano.

Esse tipo de pesquisa, embora posso servir de evidência preliminar, é extremamente vulnerável aos chamados “fatores de confusão”, como são chamadas as variáveis não controladas pelo estudo mas que podem, ainda assim, interferir no resultado. Ora, o paciente de LNH pode ter sido exposto ao glifosato, mas também pode ter sido exposto à luz solar, fumaça de poluição, produtos tóxicos, pode ser obeso, fumante, ou seja, pode apresentar inúmeros outros fatores de risco para o câncer.

Além disso, perguntar diretamente ao paciente com câncer sobre exposição a “X” pode sugestionar o respondedor e enviesar a resposta, justamente porque o paciente está buscando uma explicação para sua doença. Essa possível indução não afetará os grupos-controle de pessoas saudáveis, quando perguntadas se foram expostas ao herbicida.

Um estudo epidemiológico bem conduzido, do tipo coorte, faz exatamente o oposto. Em vez de partir de um paciente com câncer e tentar estabelecer o que levou o paciente a adoecer, o coorte acompanha um número elevado de pessoas expostas a um determinado fator de risco por um grande intervalo de tempo, e analisa a incidência da doença.

O trabalho realizado pela Associação de Saúde de Agricultura (Agricultural Health Studies – AHS) fez exatamente isso. Acompanhou mais de 40 mil trabalhadores rurais, que apresentam a maior exposição possível ao glifosato, durante duas décadas, e mediu a incidência de LNH. Não conseguiu estabelecer uma relação entre as duas coisas.

Cartaz do Filme "Dia das Trífides", de 1962
No filme "Dia das Trífides", de 1962, plantas ganham mobilidade e conquistam a Terra

O estudo de coorte também não sofre com os vieses de memória dos pacientes dos estudos de caso, uma vez que a exposição é documentada durante anos, em um grupo específico de pessoas: no caso, trabalhadores rurais que manuseavam o glifosato. Além disso, esse tipo de estudo permite estabelecer uma correlação entre a dose da exposição e o eventual aparecimento de doenças. O estudo da AHS dividiu os trabalhadores em grupos, da menor para a maior exposição de glifosato em duas décadas.

Outro fator limitante da recente meta-análise é que os cinco estudos de caso foram obtidos em uma busca da literatura científica sobre o assunto publicada ao longo dos últimos 15 anos, mas não foram incluídos diversos resultados que não conseguiram demonstrar uma relação entre glifosato e LNH, sugerindo que os dados incorporados foram escolhidos a dedo para sustentar uma hipótese pré-definida, o que, para dizer o mínimo, é má prática científica.

Outra limitação desses estudos de caso é que os números de pessoas que desenvolveram câncer e foram expostas ao glifosato é muito pequeno. Dos casos de linfoma não-Hodgkin, apenas 3% dos pacientes já foram expostos ao glifosato. Ou seja, 97% dos pacientes desse tipo de linfoma  NUNCA foram expostos ao herbicida. Em comparação, 90% dos homens que morrem de câncer de pulmão são, ou foram, fumantes.

Se existe de fato um aumento dos casos de linfoma não-Hodgkin devido à exposição ao glifosato, este fato não parece estar abalando de forma significativa a incidência desse tipo de câncer na população como um todo. 

Não há também nenhum estudo que mostre uma relação dose-dependente entre a exposição ao glifosato e a incidência do linfoma. Era de se esperar que, se essa correlação fosse real, veríamos que quanto maior a exposição ao herbicida, maior a incidência desse tipo de câncer. Isso deveria ocorrer, por exemplo, nos Estados americanos onde há mais lavouras e maior uso do herbicida. E isso não ocorre. Assim como não ocorreu, como mostramos no início deste artigo, uma maior incidência de LNH ao longo do tempo em que o uso do glifosato na agricultura mundial cresceu vertiginosamente.

Sigam os advogados!

Em palestra proferida no Brasil em 2018, o jornalista britânico Brian Deer – autor de uma série de reportagens sobre o estudo fraudulento (e já desmentido) publicado na Inglaterra, nos anos 90, sugerindo que a vacina contra o sarampo causaria autismo – deixou o seguinte conselho para repórteres interessados em acompanhar fraudes científicas relacionadas à saúde humana: “Sigam os advogados!” Deer lembrou que Andrew Wakefield, o autor do trabalho espúrio relacionando vacinação a autismo, estava sendo financiado por advogados inescrupulosos, que pretendiam processar a indústria de vacinas.

No mundo anglo-americano, onde a maioria dos casos judiciais acaba sendo decidida por júri popular – ou seja, por representantes da opinião pública não-especializada – a manipulação da ciência, ou mesmo a contratação de cientistas, como parte da chamada “litigância predatória”, em que advogados investem contra setores impopulares da economia em busca de gordas indenizações, é um problema cada vez mais presente.

Em situações assim, a má reputação – se merecida ou não, não vem ao caso – de uma empresa acaba contaminando a avaliação de sua culpa em situações muito específicas. Para quem acha que situações assim apenas fazem justiça “por linhas tortas”, é sempre bom lembrar que cada um de nós tem muito pouco controle sobre o que a opinião pública, cada vez mais instável nesta era de redes sociais, pensa a nosso respeito.

É interessante também notar, neste contexto, que o processo movido  nos Estados Unidos contra a Bayer, atual proprietária da Monsanto, que por sua vez é a maior produtora de glifosato do mundo, e que rendeu uma indenização milionária ao jardineiro Dewayne Johnson, não partiu da “vítima”, mas de um advogado que decidiu procurá-lo, convencendo-o de que o linfoma havia sido causado pelo herbicida.

Para completar, em 2017 o jornal britânico The Times revelou que Christopher Portier, consultor da IARC que pressionou pela classificação do glifosato como “provavelmente carcigonênico para seres humanos”, recebeu US$ 160 milhões – cerca de meio bilhão de reais – de escritórios de advocacia interessados em processar a indústria de agrotóxicos. E a agência de notícias Reuters revelou, também em 2017, que a IARC optou por ignorar – sem oferecer motivo ou explicação — estudos que mostravam que o herbicida é inofensivo. A investigação da Reuters mostrou que o relatório original da IARC tendia fortemente a exonerar o glifosato, mas o texto acabou alterado, antes da publicação, pela influência de figuras como Portier.

Existem, de fato, estudos de caso que relacionam o trabalho rural com alguns tipos de câncer. Mas é extremamente difícil isolar os elementos específicos que poderiam levar à doença. O trabalhador rural está exposto a vários fatores que podem confundir o resultado dos estudos a respeito. Quem trabalha no campo certamente inala mais fumaça de diesel, mais poeira, resíduos de diversos outros pesticidas, fertilizantes, e está mais exposto ao sol.

Apesar disso, a justiça americana ignorou todo o consenso científico e condenou a Bayer a pagar uma indenização milionária. O júri declarou ter sido muito influenciado pela análise da IARC. Existem, atualmente, 8700 processos abertos contra a Monsanto/Bayer nos EUA.

A IARC, seja intencionalmente ou por pura incompetência, tornou-se um arcabouço inesgotável de falsas evidências sobre substâncias supostamente cancerígenas, evidências que podem enriquecer escritórios de advocacia e favorecer interesses econômicos investidos no marketing da chamada agricultura “orgânica". Hoje o glifosato é o vilão. Amanhã, quem sabe, será a salsicha.

Ciência e evidência

Num dos momentos menos brilhantes de sua, no geral, heroica cobertura de ciência, a Folha de S. Paulo deu, em 2010, destaque a uma tese de doutorado defendida em Minas Gerais que apontava risco maior de câncer para pessoas que vivem perto de torres de telefonia celular. Mais recentemente, o site The Intercept comprou a ideia de que o glifosato é responsável por uma epidemia, não de câncer, mas de abortos e nascimentos prematuros, num município rural do Piauí.

O trabalho do Intercept baseia-se, em parte, em dissertação de mestrado que aponta a presença de glifosato no leite materno – mas que não enfrenta a questão fundamental, de como uma molécula quimicamente incapaz de interagir com células de animais poderia afetar a saúde humana. A reportagem também é inspirada pelo fato de que há uma região do Piauí onde o uso de glifosato é alto, e onde também são elevados os dados negativos sobre gravidez e saúde neonatal.

Cientificamente, como evidências de relação causa-efeito, tanto a tese divulgada pela Folha em 2010 quanto a dissertação e os números acolhidos pelo Intercept têm, no máximo, o mesmo valor que o gráfico que aponta forte correlação entre suicídios por enforcamento e investimento em pesquisa espacial.

Não é porque duas coisas caminham juntas ao longo do tempo que existe alguma relação entre elas. E mesmo que exista relação, ela não é, necessariamente, de causa e efeito: a expansão da atividade agrícola, que aumenta o uso de glifosato, tem inúmeras outras consequências ambientais e demográficas, e talvez uma delas esteja causando a epidemia de nascimentos prematuros no município piauiense de Uruçuí, alvo da reportagem do site. Se esse for o caso, o foco obsessivo no herbicida só faz obscurecer a causa real do problema.

Mas e o tabaco?

Argumentos como os dos parágrafos acima costumam ser respondidos com objeções que começam com “mas o tabaco”, lembrando o esforço da indústria do cigarro em obscurecer a ciência e lançar dúvida sobre o fato incontroverso de que a fumaça de tabaco causa câncer, principalmente câncer de pulmão. Não estaria a Bayer/Monsanto fazendo o mesmo?

 

anúncio antigo de cigarro

O paralelo, no entanto, apenas demonstra desconhecimento da história e da ciência por trás da relação entre fumo e câncer: os primeiros estudos sobre o assunto, publicados no início dos anos 50, eram tão claros e conclusivos que, em cerca de dez anos, o governo dos Estados Unidos já recomendava às pessoas que parassem de fumar.

Em que pese o marketing pesado dos fabricantes de cigarro ao longo de toda a segunda metade do século passado, a ciência sobre o risco de fumar já era clara e virtualmente incontestável desde, pelo menos, 1960. No caso do glifosato, a ciência clara aponta para a segurança do composto – desde que usado de forma correta – e o marketing, se existe, está do outro lado.

O epidemiologista britânico Austin Bradford Hill, um dos principais responsáveis por provar a ligação entre tabaco e câncer de pulmão, propôs uma série de critérios para filtrar suspeitas de que um determinado fator X seria a causa da doença Y.

Esses critérios incluem força da correlação (elevação clara do risco na população exposta a X, em comparação às demais populações), consistência (a correlação deve existir em todas as populações expostas, mesmo se elas diferirem em outras características), gradiente temporal (quanto maior o tempo de exposição, maior o risco), gradiente de dosagem (quanto maior a dose de exposição, maior o risco) e plausibilidade biológica (a ligação entre contaminante e doença deve “fazer sentido” em termos da ciência fundamental).

A relação tabaco-câncer se encaixa em todos esses critérios. A glifosato-câncer, em nenhum.

Conspiração

Se a maioria dos estudos de boa qualidade e as principais agências regulatórias do mundo – incluindo aquelas com visões às vezes antagônicas, como a americana e a europeia, e também a brasileira Anvisa, que completou uma revisão sobre o assunto há pouco tempo – concordam que o glifosato, corretamente usado, é inofensivo para a saúde humana, insistir no oposto pressupõe um grau de incompetência ou venalidade, por parte dessas agências, comparável ao atribuído, pelos negacionistas da mudança climática, aos cientistas que participam do consenso em torno do aquecimento global antropogênico.

É muito fácil seguir a evidência científica quando ela aponta na direção dos preconceitos ideológicos do grupo com que nos identificamos e revela os “vilões” que nos acostumamos a esperar. Também é fácil apontar o ridículo das visões conspiratórias que negam a evidência que trabalha a nosso favor. Enxergar as próprias distorções pode ser muito mais difícil.

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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