Qual liberdade?

Apocalipse Now
4 mai 2024
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Criação de Adão

A morte recente do filósofo americano Daniel C. Dennett me fez revisitar um de seus livros fundamentais, “Elbow Room”, sobre a questão do livre-arbítrio. De todas a panóplia de Grandes Perguntas da Humanidade, duas sempre me pareceram irrelevantes, porque profundamente equivocadas – no mesmo sentido em que é equivocado, por exemplo, perguntar qual o diâmetro do círculo quadrado ou o número atômico do desprezo. Essas são a famosa (e melodramática) “por que existe algo em vez de nada?” e “temos realmente livre-arbítrio?” Por hoje, vamos dar uma folga ao Tudo e ao Nada, e nos concentrar na liberdade.

Em “Elbow Room”, Dennett faz um ótimo trabalho em expor a incoerência fundamental da forma como a questão do livre-arbítrio geralmente é entendida. Como escreve logo no primeiro capítulo: “Esse problema acabará por se revelar um amálgama, equivocado e mal concebido, entre a postulação apressada de problemas e um pânico autoinduzido, o falso pretexto para a construção de sistemas filosóficos sem razão de ser e de manipulações metafísicas desnecessárias”.

O filósofo começa explodindo a falsa tensão entre acaso e determinismo que assombra muito da discussão sobre liberdade humana (e também sobre natureza da mente e da consciência). Não é difícil encontrar por aí modelos propondo que o cérebro humano não é uma máquina determinística porque estaria à mercê de efeitos quânticos aleatórios, e que, graças a isso, podemos nos considerar livres e criativos.

O que fica faltando explicar nessa história é por que ideias e decisões geradas ao acaso seriam preferíveis a ideias e decisões determinadas pelas leis da física e da bioquímica. Ser aleatório é ser imprevisível, mas ser imprevisível não é o mesmo que ter liberdade ou criatividade. A roda da roleta não é nem livre, nem criativa. Parafraseando Dennett, não há motivo para considerar que uma escolha feita ao acaso seja preferível a uma escolha determinada pelas circunstâncias.

 

Fantasma na máquina

Toda a indústria do “somos quânticos, já nascemos livres” é equivocada não só porque a parte “somos quânticos” é altamente suspeita, mas também porque a equação entre aleatoriedade e liberdade não se sustenta. Ser aleatório e ser livre são categorias distintas. Uma pessoa que se comportasse de forma perfeitamente aleatória seria incapaz de manter uma conversa coerente e, solta na rua, acabaria violando vários artigos do Código Penal (e, provavelmente, pondo fim à própria vida) em poucos minutos. Isso não é liberdade, é loucura stricto sensu.

A mente é uma função do cérebro, um produto de sua interação com o restante do corpo, e o cérebro e o corpo são objetos físicos, sistemas materiais – sujeito, portanto, às leis da física e da química. Além disso, o ser humano é um ente biológico, dotado pela evolução de imperativos como buscar alimento e abrigo, evitar a dor, desejar a reprodução. E é um animal social, com preferências, alianças, emoções, vieses e horizontes psicológicos que não são apenas gerados internamente, por alguma forma de subjetividade espontânea, mas moldados pela interação entre predisposições inatas e a educação, a cultura, os acidentes e acasos biográficos, o contato com amigos, inimigos, conhecidos, colegas e parentes.

O prurido que muitos parecem sentir em afirmar que as decisões humanas são determinadas pela somatória dessas circunstâncias é causado pelo “pânico autoinduzido” de que falava Dennett: o medo de que, ao jogar fora a água do livre-arbítrio quimérico dos teólogos e metafísicos, estaríamos jogando também alguns bebês preciosos, como a dignidade humana, o senso de responsabilidade individual e, o que parece tirar o sono de muita gente, a prerrogativa de premiar os bons e de punir (com requintes de crueldade, porque afinal eles merecem) os maus.

Esse livre-arbítrio quimérico requer um agente moral absolutamente livre, uma subjetividade individual capaz de erguer-se acima da somatória de circunstâncias – resisti-las, ao ponto de, se necessário, abstrair-se por completo delas – e decidir seu curso de ação a partir de um estado de clareza moral e serenidade quase absolutas. A questão saliente aqui é: uma vez abstraídas todas as circunstâncias que moldam e impingem numa personalidade, o que resta dela? O que é uma subjetividade, senão a somatória de suas circunstâncias?

O livre-arbítrio dos místicos é um corolário do velho mito dualista da alma que “pilota” o corpo, como um herói de anime pilota seu robô gigante, do espírito radicalmente distinto e, no fim, independente do corpo. Mas esse é apenas um mito: a mente é uma função do corpo, não algo fora ou além dele, sujeita aos mesmos processos de determinação que afetam todo e qualquer sistema físico.

 

 

Liberdade, afinal

Mas e a dignidade, a responsabilidade, o castigo dos maus e o sucesso dos bons (ou vice-versa, dependendo do grau de cinismo com que se encara o mundo)? Se somos escravos da soma das nossas circunstâncias, tudo isso não fica inviabilizado? A primeira coisa a notar aí é que a expressão “escravos da soma...” reintroduz na conversa a ilusão dualista. A verdade é que não há “alguém” para as circunstâncias escravizarem: as circunstâncias, sua somatória e interação, são o “alguém”. A essência do humano é dada pelo conjunto total dos acidentes que o cercam, constituem e atravessam.

Há quem tema que, caso se admita a possibilidade de explicar as atitudes de uma pessoa em termos de causas e motivações, sem apelo a uma vontade absoluta e abstrata – onde até mesmo os “fi-lo porque qui-lo” têm causas, pelo menos em tese, discerníveis –, qualquer tipo de responsabilização se torna inviável: “tudo entender é tudo perdoar”.

Dennett considera o adágio um non sequitur, um argumento em que a conclusão não decorre da premissa. Como ilustração, cita uma frase que teria sido dita pelo filósofo britânico John Austin, durante um debate em Oxford: “Entendimento pode apenas acrescentar desprezo ao ódio”.

A segunda coisa a notar é que os conceitos de dignidade e responsabilidade, a expectativa de prêmio e a ameaça de punição são parte dessa somatória de circunstâncias. A questão real é se tê-los incluídos no conjunto torna nossas vidas, e a vida da sociedade, melhores ou não. E essa é a mesma consideração que deve ser dada à ideia de liberdade.

A quantidade, a aleatoriedade, a sutileza das circunstâncias e a complexidade das interações que compõem a personalidade e determinam os processos decisórios humanos são tamanhas que o construto de identidades individuais estáveis, fazendo escolhas até certo ponto imprevisíveis e de forma livre, representa uma aproximação boa o suficiente da realidade prática. O que não se pode é tentar derivar ideais platônicos do modelo, ou ressuscitar a superstição dualista, ambos procedimentos que levam inevitavelmente a paradoxos labirínticos e ao “pânico autoinduzido” citado por Dennett.

Podemos dizer que temos “livre-arbítrio” se “livre-arbítrio” for o nome que escolhemos dar para a imensa complexidade da qual nossas identidades individuais emergem, não porque dentro de nós existe algo que esteja acima das circunstâncias materiais ou das leis da natureza.

 

Civilização

E já que esta é uma coluna em memória de Dan Dennett, não custa repetir aqui a fórmula dele para o debate crítico civilizado:

 

1. Tente reformular a posição do seu adversário num modo tão claro, vívido e honesto que ele diga: “Obrigado, gostaria de ter pensado em colocar as coisas dessa maneira”.

2. Liste quaisquer pontos em que vocês estão de acordo (especialmente se não forem assuntos de consenso geral ou generalizado).

3. Mencione tudo o que você aprendeu com seu adversário.

4. Só então você poderá iniciar sua refutação ou crítica.

 

Há, infelizmente, inúmeros fatores que podem impedir a aplicação desse gabarito, da falta de espaço e tempo para a síntese inicial à escassez de oponentes cujas ideias sobrevivam a um resumo claro (ponto 1), ou com quem se possa concordar em algo (ponto 2) ou aprender alguma coisa útil (ponto 3). Mas isso não diminui a importância dos quatro requisitos de Dennett como referência para o que todo debatedor sério deveria, ao menos, aspirar.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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