Ciências da saúde não deveriam ser campo de disputa política

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5 mai 2025
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vidros de laboratório

 

O New England Journal of Medicine, uma das revistas médicas mais respeitadas do mundo, recebeu recentemente uma carta de tom "vagamente ameaçador", nas palavras do editor-chefe Eric Rubin. O autor era ninguém menos que o procurador federal interino dos EUA, Edward R. Martin Jr., questionando os critérios editoriais da revista e insinuando, sem provas, que haveria um viés político na seleção de artigos.

Parece absurdo? Pois não é um caso isolado. Ao contrário: é mais um sintoma da politização crescente da ciência — um campo que deveria se guiar por dados e metodologia, não por ideologias. Quando o debate científico vira trincheira política, não é só a credibilidade das instituições que sofre. É a sociedade inteira que perde o acesso a informações confiáveis, especialmente em temas sensíveis como autismo e disforia de gênero. Vivemos tempos de pensamento binário. A lógica do “ou você está conosco ou está contra nós” tomou conta do debate público. E certamente não poupa a ciência.

Veja o caso de Robert F. Kennedy Jr., hoje secretário de Saúde dos EUA. Conhecido por flertar com o movimento antivacina, ele declarou recentemente que o aumento da prevalência do autismo seria uma “epidemia” impulsionada mais por toxinas ambientais do que por fatores genéticos. Defendeu um banco de dados nacional obrigatório com registros de autistas e nomeou para liderar um estudo oficial David Geier, ativista antivacina desacreditado. A comunidade científica reagiu, como devia.

Mas existe um ponto incômodo que poucos mencionam: ao dizer que crianças com autismo severo nunca terão um emprego, um parceiro amoroso ou viverão independentemente, Kennedy expressa — com brutalidade e ignorância — realidades que muitas famílias conhecem bem. Cerca de 25% das pessoas com autismo severo enfrentam dificuldades profundas de comunicação, autonomia e inclusão. E, nos últimos anos, essas histórias têm sido cada vez mais apagadas do debate.

Como escreveu Emily May, mãe de uma criança com autismo severo, em artigo para New York Times, há uma resistência crescente, mesmo em espaços de inclusão, a usar termos como “grave” ou “nível 3” para descrever o autismo dos filhos. “Dizem que são palavras estigmatizantes, que deveríamos falar apenas em ‘altas necessidades de apoio’. Mas minha filha não consegue falar, precisa de ajuda para se alimentar e usar o banheiro. Isso não é apenas ‘alta necessidade de apoio’. Isso é uma realidade que exige nome e reconhecimento”.

Emily May também afirma que há uma resistência em aceitar que alguns pais gostariam que seus filhos fossem menos afetados pela deficiência — como se esse desejo colocasse em xeque o amor que sentem, em vez de refletir a dor que enfrentam. Pais que afirmam querer eliminar o autismo, por enxergá-lo como algo separado da identidade de seus filhos, muitas vezes são acusados de adotar uma visão eugenista, como se desejassem que seus filhos nem existissem. A reformulação do diagnóstico de autismo ampliou o número de pessoas incluídas, reduziu o estigma da condição, mas empurrou para a invisibilidade justamente quem mais precisa de apoio.

É aí que o discurso desastrado de Kennedy, apesar de tudo, toca num ponto real. O problema é que, em vez de encarar os dados com seriedade, ele os instrumentaliza com finalidades ideológicas. A resposta a isso não pode ser esconder a realidade incômoda — mas enfrentá-la com rigor e empatia.

Situação semelhante ocorre no debate sobre disforia de gênero (sofrimento significativo causado pela incompatibilidade entre a identidade de gênero da pessoa e o sexo atribuído no nascimento). No Reino Unido, o Relatório Cass — encomendado pelo sistema de saúde britânico e conduzido por Hilary Cass, pediatra independente — provocou polêmica ao afirmar que a medicalização precoce de jovens com disforia de gênero se baseava em evidências frágeis.

O estudo recomendou cautela: pausar o uso de bloqueadores de puberdade (medicamentos que interrompem mudanças físicas permanentes — como o surgimento dos seios ou a voz mais grossa) e hormônios cruzados (testosterona e estrogênio) fora de ensaios clínicos rigorosos e priorizar a saúde mental.

A reação foi feroz. Cass e sua equipe foram alvo de campanhas de difamação, protestos e ataques pessoais. Grupos ativistas acusaram o relatório de ser transfóbico e politicamente motivado — ignorando o fato de que foi elaborado com base em revisão extensa de literatura e consulta a centenas de profissionais e usuários do sistema de saúde. A própria Cass teve que reforçar, mais de uma vez, que o objetivo do relatório era melhorar os cuidados, não os negar.

Parte da resistência ao relatório vem de uma lógica perigosa: a de que qualquer questionamento dos protocolos existentes seria automaticamente um ataque à existência das pessoas trans. Essa postura inibe a discussão científica legítima e sufoca profissionais que desejam entender melhor os efeitos de intervenções médicas em adolescentes. A ciência se constrói em debate e revisão — não em fidelidade a dogmas ideológicos, de qualquer lado que venham.

Mais um exemplo. Nos EUA, Johanna Olson-Kennedy, uma médica líder no tratamento de jovens com disforia de gênero,  encabeçou um estudo de mais de US$ 5 milhões, financiado pelo National Institute of Health, sobre o mesmo tema. Ela e sua equipe reuniram 95 crianças e adolescentes de várias partes do país e ofereceram bloqueadores de puberdade. Quando os resultados, após dois anos de acompanhamento, mostraram que os bloqueadores não produziam melhora significativa na saúde mental dos jovens, optou por não publicar os resultados. Alegou temer como os resultados poderiam ser usados por políticos conservadores. Mais uma vez, a verdade ficou soterrada por receios legítimos — mas que não justificam o silêncio.

Vemos figuras políticas deturpando dados científicos para justificar projetos retrógrados. Afirmações corretas, mas inconvenientes, que são destruídas/canceladas. Pesquisadores decidindo esconder resultados por receio de alimentar o discurso errado. Mas quando a ciência é manipulada por medo — seja medo da extrema direita ou de patrulhas identitárias — pessoas reais ficam desamparadas. As famílias, os pacientes, os médicos que tentam tomar decisões difíceis com base em evidência e não em slogans.

Integridade científica exige coragem. Exige dizer verdades desconfortáveis, mesmo quando elas não agradam a ninguém. Exige reconhecer que há autistas severos que precisam de políticas específicas — sem reforçar preconceitos. Que há jovens trans que merecem cuidados individualizados — sem normalizar protocolos frágeis. Não é fácil sustentar esse tipo de nuance num ambiente polarizado. Mas é justamente por isso que se tornou urgente. Se abrirmos mão da ciência como terreno comum, sobra apenas o barulho das torcidas. E, nesse jogo, quem sempre perde são os mais vulneráveis.

Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de "Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis" (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. É colunista de saúde mental da revista Veja. Siga a autora no Instagram: @ilanapinsky_

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