Mutações são mesmo aleatórias?

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5 mai 2025
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DNA

 

Nos cursos de biologia evolutiva é muito comum aprendermos que a evolução ocorre em duas etapas: (1) geração de variação por mutação e outros processos, como recombinação; e (2) triagem da variação produzida, por meio de processos determinísticos (seleção natural) ou aleatórios (deriva genética). Há uma sutileza quanto isso, que eu apontei aqui, e não vou repetir, por isso recomendo a leitura dessa coluna anterior. Diz-se que o primeiro passo, produção de variação, especialmente por mutação, é aleatório. Aliás, quando criacionistas dizem que a evolução é aleatória, geralmente um “evolucionista” responde com “as mutações são aleatórias, mas a seleção não”.  Mas será mesmo que as mutações são aleatórias?

Para começo de conversa, o que se entende por aleatório pode variar bastante, então isso afeta o significado do termo “mutações aleatórias”. Por exemplo, as taxas de mutação variam entre os diferentes tipos de bases (as "letras" do DNA: A, T, C, G). Existem dois tipos principais de mutações quanto à natureza da mudança química: as transições (A↔G, ou C↔T) e as transversões (todas as outras mudanças possíveis). O número de possíveis transversões é muito maior do que o de transições (que são apenas quatro), mas as transições acontecem com mais frequência. E as taxas de transições/transversões variam de grupo de organismos para grupo de organismos.

Além disso, se por “mutações são aleatórias” pretende-se dizer a probabilidade de uma mutação ocorrer é a mesma nas diferentes regiões do genoma, então nesse sentido as mutações também não são aleatórias. Estudos em plantas têm demonstrado que as taxas de mutação são sistematicamente menores nas regiões do DNA que contêm genes e em genes que desempenham funções importantes no genoma. Em outras palavras, nas partes do DNA que realmente produzem proteínas ou que têm papéis essenciais para o funcionamento da planta, as mutações são menos frequentes. Isso pode ocorrer porque mutações nessas áreas têm mais chance de causar problemas — então, conforme uma hipótese, ao longo da evolução, organismos desenvolveram mecanismos que as protegem mais, reduzindo a taxa de erro ali.

Talvez as mutações sejam aleatórias quanto ao “caminho” evolutivo que uma população, submetida a pressão seletiva, tomará. Pode ser... Mas considere o seguinte. MacLean e colaboradores (2010) investigaram como a bactéria Pseudomonas aeruginosa se adapta à rifampicina (um antibiótico) em várias culturas replicadas. Eles observaram quantas vezes diferentes formas resistentes se tornavam comuns nessas populações. O grupo mediu tanto os efeitos na aptidão (ou seja, o quanto cada mutação ajudava a bactéria a sobreviver e se reproduzir) quanto as taxas de mutação de 11 alterações específicas no gene rpoB, que conferem resistência ao antibiótico.

Segundo os resultados apresentados no estudo, quanto maior a taxa de mutação de uma dessas alterações, maior a chance de ela se tornar dominante nas populações — havia uma correlação relativamente forte entre essas duas coisas. Ainda, análise detalhada revelou que isso não aconteceu porque essas mutações eram mais vantajosas: não havia relação significativa entre taxa de mutação e o quanto a mutação aumentava a aptidão da bactéria. Ou seja, a probabilidade de seguir um “caminho” específico de adaptação depende da taxa de mutação associada a esse caminho; em outras palavras, caminhos favorecidos por taxas mais altas de mutação contribuem com mais frequência para a adaptação. Portanto, a maneira como a bactéria evolui resistência à rifampicina não é totalmente independente das mutações disponíveis — ela depende, e muito, de quais mutações ocorrem com mais frequência.

Mas há um sentido que a maioria dos biólogos evolutivos têm em mente quando falam que as mutações são aleatórias. A mutação é aleatória, mas em um sentido mais fundamental. As mutações acontecem ao acaso com relação ao que seria útil para a sobrevivência e a reprodução. Ou seja, o fato de uma mutação ser boa ou ruim para o organismo não influencia se ela vai acontecer ou não. Por exemplo, se o ambiente muda, isso não faz com que aumente a chance de surgirem mutações que ajudem o organismo a se adaptar. As mutações continuam surgindo de forma imprevisível — o ambiente não "escolhe" ou "provoca" mutações úteis.

Um clássico experimento, conduzido pelos cientistas Joshua e Esther Lederberg, demonstrou que mutações são aleatórias nesse sentido. A ideia era verificar se mutações surgem porque o ambiente as exige — ou se ocorrem ao acaso, sem relação com o que seria útil ao organismo. O desenho experimental foi o seguinte: a bactéria Escherichia coli pode ser atacada por um vírus chamado T1. No entanto, algumas dessas bactérias carregam uma mutação que as torna resistentes ao vírus.

Os Lederberg começaram cultivando E. coli em uma placa de Petri, a partir de uma única bactéria que não era resistente. Depois de um tempo, formaram-se centenas de colônias — cada uma crescendo a partir de uma célula original. Essa foi a chamada "placa-mestre".

Eles então pressionaram levemente um disco coberto com veludo sobre a placa-mestre, de modo que o veludo pegasse um pouco de cada colônia. Em seguida, usaram esse mesmo veludo para transferir as bactérias para várias placas idênticas (as “placas réplica”), reproduzindo, em cada placa, a mesma posição relativa das colônias que havia na placa-mestre. O próximo passo foi aplicar o vírus T1 sobre todas as placas. Como esperado, o vírus matou quase todas as colônias. Mas algumas poucas sobreviveram — ou seja, eram resistentes.

Agora vem a parte crucial: as colônias que sobreviveram estavam sempre na mesma posição nas diferentes placas. Isso mostra que as mutações de resistência ocorreram antes do contato com o vírus, ainda na placa-mestre, e não foram causadas pela presença do vírus.

Esse experimento serve para testar duas hipóteses:

1. Hipótese da mutação dirigida: o vírus induz a mutação. Se isso fosse verdade, cada placa deveria ter colônias diferentes sobrevivendo — já que a mutação ocorreria "na hora", sob pressão do vírus.

2. Hipótese da mutação aleatória: as mutações surgem ao acaso, sem relação com o ambiente. Se isso for verdade, as mesmas colônias já teriam a mutação desde o início, e por isso sempre sobreviveriam.

O que os Lederberg encontraram apoia a segunda hipótese: as mutações aconteceram antes da exposição ao vírus, de forma aleatória. Portanto, esse experimento (e muitos outros semelhantes) confirma que as mutações não surgem “porque são necessárias” — elas acontecem ao acaso, independentemente do que o ambiente exige.

A relação entre mutação, conceitos de aleatoriedade e o fenômeno evolução é complexa. Um tratamento inicial rigoroso requer um livro. E esse livro existe: “Mutation, Randomness, and Evolution”, de autoria de Arlin Stoltzfus, biólogo evolutivo da Universidade de Maryland, EUA. Por sinal, Stoltzfus não considera demonstrado que as mutações sejam aleatórias no sentido de serem independentes do efeito que têm sobre a aptidão. Ele comenta: “As pesquisas disponíveis simplesmente não incluem estudos sistemáticos sobre a relação entre as taxas de mutação e os efeitos na aptidão”. Para ele, a posição padrão é mais doutrina do que necessariamente uma posição apoiada em evidências sólidas. Evidentemente, muitos discordam.

Num tom mais opinativo, imagino que ambas possibilidades têm seu lugar. O debate deve ser sobre frequência relativa (o que é mais comum), não se todas as mutações são aleatórias ou não; também suspeito que, como é regra geral na história natural, a prevalência da aleatoriedade varia taxonomicamente. Seja como for, a questão deve ser resolvida empiricamente, não verbalmente. Até lá, o acaso vai nos proteger.

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

SAIBA MAIS

MacLean, R. C., Perron, G. G., & Gardner, A. (2010). Diminishing returns from beneficial mutations and pervasive epistasis shape the fitness landscape for rifampicin resistance in Pseudomonas aeruginosaGenetics186(4), 1345-1354. https://doi.org/10.1534/genetics.110.123083

Stoltzfus, A. (2021). Mutation, randomness, and evolution. Oxford University Press.

Monroe, G. (2023). Are mutations random? https://doi.org/10.1093/evolut/qpad152

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