Folheto de prevenção ao suicídio distribuído na USP recomenda pseudociências

Questão de Fato
17 dez 2021
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zodiacman

 

Ao longo do primeiro semestre de 2021, houve três casos de suicídio entre estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Essa é a maior unidade da USP, com 12,6 mil alunos matriculados.

As mortes motivaram professores, funcionários, alunos e profissionais da saúde a criar um grupo de apoio para acolher e orientar pessoas com depressão e outros transtornos mentais dentro da universidade. Paulo Martins, diretor da FFLCH, anunciou a iniciativa em artigos publicados na Folha de S. Paulo e no Jornal da USP no último mês de julho.

Entre as medidas implementadas estão a criação de canais de contato direto (telefone, WhatsApp etc.) para pessoas com ideação suicida e outras queixas urgentes; a realização de pesquisas entre docentes e discentes para determinar a prevalência de problemas psicológicos e psiquiátricos na FFLCH; visitas para averiguar a qualidade de vida no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) – os dormitórios apertados no campus da capital paulista em que diversos alunos permaneceram em isolamento social durante a pandemia, distantes de suas famílias.

Todas essas informações estão resumidas em uma cartilha impressa e distribuída no campus, disponível aqui para download em formato PDF. O folheto também dá recomendações consensuais entre psicólogos e psiquiatras sobre a maneira adequada de se lidar com pessoas que mencionam o desejo de tirar a própria vida.

Apesar disso, a cartilha dedica uma seção inteira, intitulada “Bem-estar e qualidade de vida”, a recomendar práticas integrativas e complementares (conhecidas pela sigla PICs) contra estresse, depressão e ansiedade. Maria Helena G. Rodrigues, chefe do Serviço de Editoração e Distribuição da FFLCH, assina o conteúdo desse subtítulo e se credita como terapeuta holística, especialista em Reiki e auriculoterapia. Além de suas próprias especialidades, ela sugere também yoga, aromaterapia, mindfulness, acupuntura, florais e arteterapia.

Em uma das últimas páginas, há uma lista com essas e outras PICs que são oferecidas gratuitamente no Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo. (O estabelecimento, originalmente voltado ao funcionalismo público da capital paulista, também atende o público geral via convênio com o SUS.)

O problema é que não há evidências conclusivas do sucesso da maioria dessas práticas no tratamento de distúrbios psicológicos. “Os dados dos testes são quase invariavelmente afetados por numerosas limitações”, escreve Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exeter, no Reino Unido, e especialista em medicina integrativa e complementar. 

“Amostras pequenas, viés de seleção, incerteza sobre o diagnóstico, falta de cegamento, falta de medidas de desfecho adequadas, falha no controle de efeitos terapêuticos inespecíficos, falha no controle de fatores de confusão, duração inadequada e crença pessoal do investigador no tratamento”. (Se perdeu no jargão? Fique tranquilo, vamos explicar vários desses termos ao longo do texto.)

 

Boas intenções

“Ainda que o grupo que produziu a cartilha tenha sido bem-intencionado – e, é claro, não deixou de compartilhar boas informações sobre saúde mental –, a menção às PICs precisa ser criticada”, diz à RQC o psicólogo Daniel Gontijo, doutor pela UFMG e especialista em psicologia baseada em evidências. “Não há base científica sólida para o uso de PICs como tratamento de transtornos mentais – tampouco para a prevenção de suicídio”. Os autores da cartilha foram convidados a se manifestar, mas não enviaram suas considerações até a data de conclusão deste texto.

Gontijo explica que alguns estudos até sugerem uma melhora no bem-estar dos voluntários, mas isso não significa que seja possível atribuir o resultado positivo ao mecanismo de funcionamento proposto para a PIC em questão. Muitas terapias integrativas e complementares alegam atuar por intermédio de energias ou campos de força cuja existência jamais foi verificada, ou se baseiam em pressuposições mirabolantes (e comprovadamente falsas) sobre a anatomia humana. No caso da auriculoterapia, por exemplo, a ideia é que cada local da orelha está conectado a uma parte diferente do corpo, uma afirmação que não encontra qualquer respaldo na literatura médica.

Por outro lado, quase toda PIC gera efeito placebo e fornece momentos de descanso, relaxamento, exercício físico e socialização, que são todas maneiras comprovadamente eficazes de se sentir bem (e têm a virtude de serem explicações mais simples e testáveis para o fenômeno observado). Nas palavras de Gontijo: “Alguns pacientes poderiam experimentar pequenas melhoras por terem relaxado durante sessões de Reiki, por estarem socializando durante danças circulares ou simplesmente por acreditarem que serão curados pelos florais – o efeito placebo”.

Outra questão delicada é que, embora a cartilha seja clara em afirmar que as PICs não substituem psicólogos e psiquiatras, isso acontece na prática. Um levantamento realizado neste ano em 25 países revelou que apenas 3,6% dos 138 mil entrevistados usavam PICs contra transtornos mentais, mas que entre estes, um terço usava apenas as PICs, sem buscar acompanhamento profissional.

Nos próximos parágrafos, vamos explicar os tropeços e percalços em experimentos que supostamente comprovam a eficácia das PICs contra problemas psiquiátricos e mostrar por que a maioria dessas práticas não tem mecanismos de funcionamento plausíveis com base no que conhecemos sobre a anatomia e fisiologia humanas. Isso começa em uma discussão sobre os bastidores da ciência.

 

Consensos científicos

Ovos são a piada pronta do noticiário de ciência: o cidadão médio tem a impressão de que todo mês sai um artigo novo sobre o alimento – e que ele sempre contradiz as conclusões do estudo anterior. Por um lado, essa autorrevisão constante é essencial: o que torna os cientistas confiáveis é justamente que eles, pelo menos em teoria, não têm dogmas e aceitam mudar de ideia diante de novas evidências.

Mas o vai e vem nas conclusões também é sintoma de um problema prático, que o caos do kit COVID-19 ilustrou bem: nem todos os estudos científicos nascem iguais. Muitos têm limitações metodológicas que invalidam suas conclusões ou, no mínimo, exigem que os jornalistas façam algumas ressalvas na hora de comunicar a descoberta. Sem esses poréns, fica a falsa impressão de que qualquer estudo é bom e tem valor idêntico, assunto que a RQC já abordou aqui.

Esse é um problema no debate em torno da medicina alternativa (ou integrativa, ou complementar). De fato, há centenas de periódicos publicando caminhões de estudos com conclusões favoráveis a Reiki, homeopatia, acupuntura e tantas outras terapias. Um desavisado pode pensar que esse é um corpo de evidências definitivo a favor das PICs, que justifica até sua inclusão no SUS. Mas essas revistas especializadas não têm processos de seleção, edição e revisão confiáveis, e publicam artigos que sofrem da longa lista de deficiências apontadas por Edzard Ernst alguns parágrafos atrás.

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Outro ponto importante é que experimentos na área da saúde vêm em diversas formas: testes in vitro, testes com cobaias animais, ensaios clínicos controlados com voluntários humanos (em que o cientista organiza cuidadosamente o experimento para evitar vieses e distorções) ou estudos observacionais (em que o cientista só coleta dados, sem intervir).

Essas abordagens todas não fornecem evidências equivalentes: embora estudos observacionais, testes in vitro e testes em animais possam mostrar que uma terapia é promissora, só saberemos se ela realmente funciona após uma sequência de ensaios clínicos minuciosos com voluntários humanos, que seguem uma série muito estrita de etapas. Esses ensaios, conhecidos como randomized controlled trials (RCT), funcionam da seguinte maneira:

Primeiro, é preciso convocar um número razoável de voluntários. O próximo passo é dividi-los em dois grupos. Um grupo será submetido à terapia real, o outro grupo usará um placebo (no caso das PICs, projetar o placebo é uma etapa particularmente desafiadora: em sua carreira, Ernst já usou agulhas retráteis para simular acupuntura, e contratou atores para fazer as vezes de curandeiros).

A distribuição dos voluntários entre os dois grupos precisa ser aleatória. O nome dessa etapa é randomização. Ela evita, por exemplo, que os organizadores do estudo coloquem pessoas que têm menos problemas crônicos de saúde em um dos grupos, gerando uma confusão entre o que é resultado do tratamento e o que são variáveis pré-existentes. Esse tipo de viés com frequência é inconsciente, e não resultado de má-fé. Outra forma de blindar os resultados é montar um teste duplo-cego: nem os pesquisadores nem os voluntários podem saber qual dos grupos está recebendo o placebo e qual está efetivamente sendo tratado.

Filtrar apenas os RCTs dentre todos os estudos existentes sobre uma terapia qualquer (e depois, separar os RCTs decentes dos que têm problemas graves) é uma tarefa suada, mas necessária para chegar a um consenso sobre a eficácia de um tratamento. Isso torna especialmente importantes dois tipos de artigo científico: as revisões sistemáticas e os overviews de literatura.

As revisões sistemáticas são mais formais e mecânicas: o cientista varre todas as bases de dados relevantes em busca dos RCTs disponíveis sobre os efeitos de uma droga, terapia ou intervenção médica qualquer. Então, ele avalia a qualidade dos métodos empregados em cada um dos artigos de acordo com critérios objetivos, e assim determina se o material disponível permite ou não chegar a um consenso em torno da eficácia. Já os overviews da literatura são mais informais e qualitativos: servem como uma caminhada guiada pelo conteúdo disponível sobre um tópico, mas não almejam dar uma palavra final.

 

A força

Em 2008, Edzard Ernst realizou com dois colegas uma revisão sistemática de toda a literatura publicada até então sobre a eficácia do Reiki contra distúrbios mentais. O primeiro desafio foi descobrir artigos elegíveis: entre 186 estudos encontrados sobre o assunto, apenas 19 eram RCTs. Destes 19, só nove preenchiam pré-requisitos de qualidade mínimos. Dentre esses nove, cinco não apresentaram quaisquer resultados favoráveis à prática, e quatro apresentaram. Na escala Jadad, que avalia a qualidade metodológica de estudos e gera notas de um 1 a 5, os quatro estudos com resultados positivos pontuaram entre 2 e 3.  

Ou seja: a literatura disponível não é capaz de fornecer um corpo de evidências conclusivo a favor da eficácia do Reiki, seja porque há dificuldade em replicar os resultados, seja por causa dos problemas metodológicos encontrados. Nesse caso, a recomendação de Ernst é sempre a mesma: precisamos realizar estudos maiores e melhores, que obedeçam às regras do jogo. 

Além dos resultados, é importante lançar um olhar crítico sobre o mecanismo de ação proposto para o Reiki. Os mestres responsáveis pela aplicação afirmam ser capazes de tratar e curar diversas doenças por meio da manipulação (à distância, sem toque) de uma energia vital conhecida como ki, que permeia todos os seres vivos. Essa energia jamais foi detectada ou medida em experimentos, e não se encaixa no modelo atual das forças que atuam no Universo.

A ideia de “energia vital” pode ter um papel como metáfora, refletindo estados emocionais, mas o conceito não tem realidade objetiva – não é “algo” que existe no mundo e afeta a matéria, como a gravidade ou o eletromagnetismo, por exemplo. O ki tem equivalentes em outras culturas. Na China, atende por chi, na Índia, por prana. Trata-se de uma metáfora de alcance mitológico e religioso, e nada além disso.

 

O caso da acupuntura

Em 2010, Ernst conduziu uma revisão sistemática das revisões sistemáticas disponíveis sobre acupuntura vs. depressão. A acupuntura é outra forma de terapia alternativa cujo mecanismo de ação proposto é implausível, ainda que de maneira menos óbvia do que no caso do Reiki: a ideia é que nosso corpo contém uma rede de canais, ou “meridianos”, por onde flui o chi, e que essa rede pode ser manipulada pela inserção de agulhas em certos pontos-chave.

Ernst encontrou oito revisões sistemáticas, que usavam ao todo 71 ensaios clínicos como fontes primárias. Das oito, cinco foram favoráveis à acupuntura e três foram contrárias. Ernst aponta, porém, que as cinco revisões com resultados positivos consultaram apenas trabalhos publicados na própria China. Esse é um dado suspeito porque, de modo a ser realmente sistemática, uma revisão precisa vasculhar toda a literatura relevante para o tema, sem distinções geográficas. Além disso, Ernst verificou que, dos 64 artigos chineses analisados nessas revisões, apenas 6 apresentavam desfechos claramente negativos para a acupuntura, o que é uma taxa de sucesso alta demais para qualquer tratamento, seja PIC ou não.

Revisões mais recentes amplificam os motivos para suspeita. Esta, realizada por pesquisadores chineses e publicada em 2014 num periódico especializado em PICs, avaliou que 99,8% de 847 RCTs sobre acupuntura realizados na China dão resultados positivos (aqui, estamos falando de acupuntura contra quaisquer problemas de saúde, não apenas transtornos mentais). Dentre os estudos que comparam a acupuntura com terapias convencionais, 88,3% verificam que a acupuntura é melhor que a medicina comum, e 11,7% que ela é tão boa quanto. Os autores da revisão admitem que esses resultados representam, no mínimo, de um viés de publicação: os pesquisadores parecem divulgar os números apenas quando são favoráveis.

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Esta outra investigação, realizada por um centro de medicina baseada em evidências na Universidade de Sichuan, avaliou 3.173 estudos na área de saúde realizados no país asiático. Todos se declaravam RCTs; os tópicos abordados pertenciam tanto à medicina convencional como à medicina integrativa e complementar. Após entrevistas com os autores de 2.235 desses artigos, determinou-se que apenas 271 deles de fato seguiram os critérios necessários para uma randomização bem-sucedida. Ou seja: mais de 80% dos RCTs chineses falham na primeira letra da sigla. Nem só de viés se fazem resultados milagrosos – escorregar na metodologia também é imprescindível.

Além disso, a acupuntura sofre dos mesmos problemas de plausibilidade prévia – isto é, de incompatibilidade com aspectos das ciências físicas e biológicas que temos ótimas razões para considerar corretos – que o Reiki e outras terapias baseadas em energia vital. A RQC já tratou mais detidamente da acupuntura em outros artigos.

 

No Ocidente

Situações alarmantes como a narrada acima levam alguns defensores das PICs a argumentar que a medicina baseada em evidências é influenciada pelo preconceito contra a cultura chinesa, indiana ou japonesa. Porém, o Ocidente também é berço de um amplo leque de tratamentos não convencionais, alguns mencionados na cartilha, como a terapia neural (sobre a qual a RQC já publicou uma extensa avaliação, leia aqui).

Nessa seara, uma PIC particularmente jovem é a técnica das barras de access (“barras de acesso”, mas o comum é manter o termo em inglês), que data dos anos 1990. Seu criador, o guru americano Gary Douglas, é um dissidente do peculiar culto da Cientologia. Ele parte da premissa infundada de que todos nós temos 32 pontos na testa e no couro cabeludo que podem ser massageados com as mãos. Cada uma dessas localizações corresponde a um conceito bastante genérico, como “dinheiro”, “controle”, “comunicação” e até “espaço-tempo”. Alguns pontos não são propriamente pontos: fala-se também em túneis que atravessam a cabeça da testa em direção à nuca, e em coroas que circundam o crânio (curiosos podem acessar um mapa aqui).

E méritos são reconhecidos, quando as evidências indicam. Um bom exemplo é a yoga. Embora a literatura sobre sua eficácia contra ansiedade, estresse, depressão etc. ainda seja pequena demais para permitir conclusões, ela não deixa de ser uma forma de atividade física. Especialmente nas modalidades com poses mais desafiadoras, a yoga oferece os benefícios psicológicos associados a qualquer exercício físico, uma variável que independe da crença do praticante no aspecto espiritual. (Para os interessados neste tópico, eis um texto de uma praticante cética de yoga fazendo um pente-fino nas evidências.)

Evidentemente, não é possível abordar todas as PICs mencionadas na cartilha da FFLCH-USP de maneira exaustiva em um único artigo jornalístico, e muitas delas nem sequer contam com um número de RCTs suficiente para permitir uma boa revisão sistemática. Com frequência, o problema das práticas integrativas e complementares é a ausência de quaisquer estudos, e não só a ausência de estudos favoráveis.

Um ponto que não deve ser esquecido é o de que a responsabilidade – legal e, inclusive, moral – de quem afirma conhecer os meios para aliviar sofrimentos e salvar vidas é provar o que diz. Não é o crítico que deve construir um caso meticuloso e irrefutável, mas o proponente da terapia.

Essa lógica não existe por acaso: ela é resultado de milhares de anos de experiência acumulada e sofrimento humano imposto por “curas” que faziam mais mal do que bem, mas cujos proponentes tinham carisma, autoridade ou a tradição ao seu lado.

Nas palavras de Daniel Gontijo: “Enquanto não houver pesquisas que demonstrem adequadamente a eficácia dessas práticas, elas não deveriam ser propagandeadas por instituições públicas. Aparentemente, a divulgação científica e o combate às pseudociências deveriam alcançar não só a população leiga, mas também os nossos colegas universitários”.

Bruno Vaiano é jornalista

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